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O que se passa ao Sul

Acompanharmos transformações na Argentina é fundamental, porque o Brasil logo poderá ter um parceiro bem distinto, alterando e ampliando nosso espaço econômico

Valor

Faz um ano e meio que Javier Milei foi eleito presidente da Argentina. A evolução da inflação e a liberalização do câmbio têm sido bem discutidas, mas mudanças microeconômicas profundas ainda não ganham tanta atenção1, apesar de elas provavelmente serem as que farão mais diferença para o país.

A gestão macro do governo Milei calcou-se em reajustes dos gastos do governo central abaixo da inflação, principalmente em pessoal e previdência social, possibilitando superávit primários e diminuindo a pressão sobre os juros, que ainda continuam abaixo da inflação. Já os principais impostos foram mantidos, com pequena redução temporária naqueles sobre as exportações, e bondades pré-eleitorais, como redução do IR de profissionais, revertidas. Essas ações têm paralelos abrandados no Brasil: ajustar certos gastos abaixo da inflação, reforçando o fiscal, foi um ingrediente “secreto” para o sucesso do Plano Real, diminuindo a pressão inflacionária na transição da moeda, antes de os juros ganharem proeminência na manutenção do câmbio e controle da demanda doméstica. Robustecer a arrecadação foi chave para o equilíbrio macroeconômico quando o câmbio brasileiro flutuou em 1999.

Os juros reais negativos ajudaram a dissolver (“licuar”) a dívida do Banco Central argentino, que foi sendo transferida para o Tesouro, e permitirão a dívida pública cair de 85% para 73% do PIB em 2025, com um superávit primário do governo central de apenas 1,3% do PIB. Assim, o Tesouro tem podido focar na sua dívida externa, cerca de 30% do PIB, e em reforçar as reservas internacionais que alcançaram 5,5% do PIB após desembolso do FMI (no Brasil, a dívida externa da União é de 3% do PIB e as reservas umas seis vezes mais).

A recente liberação do câmbio contou com três fatores: a boa safra em 2024-25, apesar da seca na virada do ano; a anistia fiscal que transferiu de US$ 9 a 15 bilhões “do colchão” para os depósitos bancários e poderá ser ampliada; e o empréstimo de US$ 20 bilhões com o FMI, a que talvez se somem US$ 20 bilhões de bancos multilaterais e swaps com a China, formando um pacote de 7% do PIB, equivalentes ao Brasil tomar R$ 800 bilhões no exterior para estabilizar a moeda.

Na fronteira entre o macro e o microeconômico tem estado a flexibilização das importações – para ansiedade de alguns setores industriais e moderação da inflação – e o realinhamento das tarifas de energia e transportes, agora atenuado e parcialmente casado com a redução das transferências aos governos subnacionais, um grande dreno fiscal na última década.

Mas as principais mudanças são realmente microeconômicas. Elas cobrem a liberalização dos aluguéis, aumentando a oferta de moradia; as relações de trabalho, com aumento do período probatório, anistia em favor da formalização de relações de trabalho existentes, medidas tipo MEI para ajudar as microempresas, flexibilização do seguro-desemprego, cujo valor passa a depender de acordos coletivos com sindicatos, e mesmo a dispensa de frentistas no posto de gasolina.

Há diversas outras iniciativas, cujos efeitos conhecemos no Brasil, como admitir capital estrangeiro na aviação doméstica e em serviços nos aeroportos e liberar a importação de equipamentos para o setor de óleo e gás e de máquinas usadas de modo geral. Além da redução de exigências regulatórias, fitossanitárias e de registro, inclusive de pesticidas e fertilizantes, na agropecuária.

As principais mudanças do governo Milei, as que farão mais diferença para o país, são realmente microeconômicas

Como sempre ocorre quando se mexe em estruturas de décadas, algumas medidas são quase anedóticas. Deu-se fim, por exemplo, na limitação da área plantada com erva mate, nos tetos para o preço da uva cobrado às vinícolas e volume e tipo de produção de vinho, vindos dos 1980s; e na estatal do azeite criada em 1947. Revogou-se ainda o arsenal de restrições no setor de algodão (com impacto na indústria têxtil) e açucareiro, como cotas para suprimento interno vindas dos anos 1970. Mutatis mutantes, é como ter acabado com o IBC, IAA e intervenções setoriais que ainda nos assombram com suas centenas de bilhões de reais em precatórios que terão que ser encaixados no arcabouço fiscal em 2027, mas cujo fim deu nova vida ao agro brasileiro a partir dos 1990s. A expansão das exportações de vinho e do interesse em investir na terra, inclusive por estrangeiros, já se faz sentir na Argentina.

Algumas mudanças são ainda mais profundas, porque a arquitetura social argentina é particular. A saúde, por exemplo, é ligada aos sindicatos, por meio das chamadas Obras Sociales, criadas na era peronista e postas no centro do sistema em 1970. Financiadas por assalariados e empregadores, elas correspondem aos velhos institutos por categorias no Brasil, como o IAPI e IAPETEC, extintos e integrados ao INPS há sessenta anos. Até o ano passado, mesmo os planos de saúde privados (prepagas) eram intermediados por essas Obras. Com a eliminação dessa intermediação, benefícios passam a ser expressão do Estado, não de grupos ou categorias, e se dá mais liberdade para planos privados. As transferências de renda também deixaram de ser intermediadas por grupos políticos ou setoriais.

Mas nem tudo é simplificação transversal, como ilustra o lançamento do regime de incentivo a grandes investimentos em áreas estratégicas (RIGI), com benefícios fiscais de 30 anos e outras vantagens. Esse regime contrasta, por exemplo, com a proposta esboçada há pouco pela Fazenda em parceria com MDIC, MMA e MME para atrair investimentos em data centers no Brasil, que no fundo apenas antecipa os ganhos gerais da reforma tributária.

O desmonte dos labirintos Borgeanos da arquitetura social e econômica argentina impulsionará a produtividade do país, mesmo que no curto prazo cause deslocamentos não compensados pelo aumento de certas transferências sociais. É essa expectativa que provavelmente dá popularidade ao governo. Acompanharmos essas transformações é fundamental, porque o Brasil logo poderá ter um parceiro bem distinto, alterando e ampliando nosso espaço econômico.

1) Recente trabalho do FGV/Ibre (Giambiagi e Tizziani) é uma benvinda exceção. Os relatórios do FMI continuam úteis.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-que-se-passa-ao-sul.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Joaquim Levy