Para aumentar a mobilidade da renda temos que investir pesadamente nas crianças mais pobres desde o seu nascimento
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Numa sociedade em que a condição econômica dependesse unicamente do mérito, a sua posição na distribuição de renda não dependeria da riqueza dos seus pais. Mas, no Brasil, isto não ocorre. Uma pesquisa recente usando dados inéditos da Receita Federal com mais de 1 milhão de crianças nascidas entre 1988 e 1990 mostrou que apenas 2,5% dos jovens cujos pais estavam entre os 20% mais pobres conseguiram chegar nos 20% mais ricos quando adultos1. Além disto, somente 4% dos jovens cujos pais estavam entre os 20% mais ricos se tornaram mais pobres quando adultos. Ou seja, se você nasceu entre os mais ricos é preciso muito esforço para terminar entre os mais pobres. Por que será que esta imobilidade entre classes é tão forte no Brasil?
Esta situação reflete a curva de Gatsby, que diz que as sociedades mais desiguais tendem a ter menor mobilidade de renda. Isso ocorre porque a desigualdade gera estratificação social. Ou seja, no Brasil temos bairros de ricos e bairros de pobres, escolas de ricos e escolas de pobres, clubes de ricos e clubes de pobres, e assim por diante. Esta estratificação tende a aumentar a qualidade das interações entre os ricos e diminuir a dos pobres. Por exemplo, as escolas dos ricos tendem a ser melhores do que as escolas dos pobres porque têm mais recursos. Este processo tende a fortalecer a imobilidade intergeracional no Brasil.
É interessante notar que os filhos dos mais ricos conseguiram preservar a sua posição na distribuição mesmo após os aumentos de renda familiar e de escolaridade dos mais pobres que houve no Brasil nas últimas décadas. Isto ocorre porque, além da curva de Gatsby, os mais ricos estão sempre à frente dos mais pobres na corrida educacional. Em meados do século XX, por exemplo, somente 5% dos adultos tinham ensino médio e 1% tinha ensino superior. E, nesta época, a maioria da classe média ainda estudava na escola pública.
Quando a maioria das crianças pobres também começou a frequentar a escola pública, a classe média transferiu seus filhos para escolas privadas, preservando a estratificação. Da mesma forma, quando as matrículas nas faculdades começaram a aumentar, como resultado de políticas públicas como o programa Bolsa Família, progressão continuada, Enem, Sisu e as cotas, os mais ricos passaram a fazer pós-graduação. E seus filhos passaram a cursar o ensino superior em universidades internacionais. Ou seja, os mais ricos sempre correm à frente dos mais pobres para poderem se diferenciar no mercado de trabalho e manter a estratificação.
Além disto, quando os mais pobres finalmente conseguem atingir níveis educacionais mais altos, os diferenciais de salário declinam. A figura mostra salário médio dos jovens por nível educacional em 1983 e 2023. O primeiro resultado marcante é que os salários reais médios declinaram muito para todos os níveis educacionais nos últimos 40 anos, menos para os analfabetos. Há 40 anos, você conseguia ganhar um salário médio de R$ 4.000 apenas com ensino médio. Hoje em dia, para obter este salário, os jovens precisam ter ensino superior. Antigamente, os jovens com ensino superior ganhavam R$ 8.000 em média no Brasil. Hoje em dia, para ter este salário, eles precisam ter pós-graduação.
No Brasil, os filhos dos mais ricos estão sempre à frente dos mais pobres na corrida educacional
Ainda há um diferencial substancial de salários para quem atinge níveis educacionais mais altos, mas eles diminuíram muito ao longo do tempo. Vários fatores podem explicar esta queda. Em primeiro lugar, é normal que os diferenciais de salários diminuam quando mais pessoas atingem um nível educacional mais alto. É a lei da oferta e da procura. No Brasil, o aumento do número de pessoas mais escolarizadas cresceu mais rapidamente do que a demanda por trabalhadores com mais educação, o que provocou parte da queda dos diferenciais de salários. Além disto, a expansão recente de matrículas no ensino superior, por exemplo, ocorreu em instituições de pior qualidade, geralmente com ensino à distância
Finalmente, o crescimento dos salários na economia com um todo também depende da taxa de crescimento de produtividade do trabalho no longo prazo, que foi muito baixa nos últimos 40 anos no Brasil. Isso fez com que o salário real médio dos jovens tivesse uma queda de 17% neste período. O declínio do salário médio só não foi maior porque mais pessoas atingiram níveis educacionais mais altos, que pagam salários maiores. Nos Estados Unidos, em contrapartida, o salário mediano dobrou nos últimos 20 anos.
Em suma, o Brasil sempre foi uma sociedade altamente estratificada, com baixa mobilidade social entre as gerações. Isto não mudou nem mesmo com os avanços recentes na escolaridade dos jovens nascidos em famílias mais pobres. Além disto, o salário médio dos jovens declinou ao longo do tempo. E sua renda familiar per capita só aumentou porque hoje em dia eles têm menos filhos e a taxa de participação das mulheres aumentou muito, assim como as transferências de renda. Para aumentar a mobilidade da renda temos que investir pesadamente nas crianças mais pobres desde o seu nascimento. E para aumentar o padrão de vida dos jovens pobres precisamos aumentar a produtividade no Brasil.
1) “Intergenerational Mobility in the Land of Inequality”, por Britto, Fonseca, Pinotti, Sampaio e Warwa.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/mobilidade-e-produtividade-baixas.ghtml
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