E tem criatividade fiscal também
Folha
O governo lançou o Programa “Agora tem especialista“. O mérito é inconteste. Segundo a exposição de motivos da medida provisória, trata-se de “diminuir o tempo de espera de consultas, procedimentos, exames(…) diante da elevada demanda reprimida no SUS, com destaque para condições de alta complexidade, como o câncer”.
O problema é que, para pagar a conta, em vez de reduzir outras despesas, usou-se a criatividade fiscal.
Hospitais privados prestarão os serviços e serão pagos com um “crédito financeiro” de até R$ 2 bilhões por ano, de 2026 a 2030, que poderá ser usado prioritariamente para pagar dívidas que os hospitais tenham com o governo. “Se houver sobra” —diz a MP— “poderão ser objeto de compensação com débitos próprios vencidos ou vincendos”.
Ou seja, o governo vai pagar os hospitais com um “vale”, com o qual eles podem quitar dívidas ou impostos. Com isso, não se registra no orçamento a despesa com serviços médicos, driblando-se o limite de gastos do arcabouço fiscal.
Portaria dos ministérios da Saúde e Fazenda limitou o uso dos créditos ao abatimento de dívidas dos hospitais, estimada em R$ 34 bilhões, nada falando sobre o uso para pagar impostos. Mas a MP permite, e a portaria pode ser mudada a qualquer momento, liberando o uso do “vale” para pagar impostos correntes. O que é provável, pois um dia o estoque da dívida dos hospitais acabará.
Na mesma linha, será possível que planos de saúde prestem atendimento médico como forma de pagar ao SUS pelo atendimento de seus clientes na rede pública (R$ 750 milhões/ano, R$ 9 bilhões em dívidas).
O objetivo do limite de gastos é frear o crescimento da dívida pública. A renúncia de receita do Programa aumenta o déficit e faz a dívida crescer. Logo, cumpre-se formalmente o arcabouço, mas não se atinge o seu objetivo.
Um argumento em favor do uso do “vale” é de que seria difícil cobrar a dívida dos hospitais e planos, de modo que receber o pagamento em prestação de serviços seria melhor do que nada. Ora, o governo tem comemorado que as transações tributárias têm recuperado créditos de difícil retorno. Por que não aplicar aos hospitais e planos? Que se cobre a dívida pelos caminhos normais e se faça a despesa pela via orçamentária.
A MP também estipula que será prestada atenção especializada em saúde pela AGSUS (Agência Brasileira de Apoio à Gestão do SUS) —um serviço social autônomo, cuja função principal é gerenciar o Programa Mais Médicos— e pelo Grupo Hospitalar Conceição S.A, uma estatal dependente.
Essas duas instituições, por lei, podem receber recursos de pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado. Assim, nada impede que, por exemplo, um “Fundo Privado”, controlado pelo governo, aporte recursos nas duas instituições, como já se fez no Programa Pé de Meia. Seria mais um drible.
A fundação de apoio de ciência e tecnologia da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), que não está sujeita ao teto de gastos, também dará “apoio a políticas (…) de atenção especializada, com a possibilidade de contratação de pessoas e serviços”. Esse tipo de fundação de apoio tem o propósito de investir em ciência e tecnologia, e não de prover serviços públicos: um desvirtuamento de função para, de novo, contornar o arcabouço.
O problema não está no mérito da política pública, e sim na incapacidade de fazer escolhas, de substituir políticas ruins por boas. Cria-se o cacoete de gastar por fora, sem transparência, alimentando a dívida, os juros e a inflação.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-mendes/2025/06/agora-tem-especialistas.shtml
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