Entrevistas

‘Diminuir estabilidade não melhora desempenho de servidor’, diz pesquisador

UOL

Desde maio, um grupo de trabalho na Câmara dos Deputados vem realizando debates e audiências sobre a reforma administrativa. A ideia é colher sugestões sobre temas como avaliação, estabilidade e progressão de carreira para servidores públicos, com o objetivo de subsidiar votações no Congresso Nacional.

Em entrevista exclusiva à coluna, Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e um dos maiores especialistas do país no assunto, afirma que o principal desafio da reforma administrativa é construir um sistema robusto e eficaz de avaliação de desempenho.

Sem isso, diz ele, mexer na estabilidade dos servidores não vai necessariamente garantir uma melhor prestação de serviços aos cidadãos, nem aprimorar a gestão do orçamento público.

“As pessoas dizem: ‘Ah, eu não consigo ter estabilidade fiscal, porque eu não consigo diminuir a folha e porque eu não consigo tirar [demitir] as pessoas’. Não é verdade. Você não consegue tirar as pessoas porque não pode descontinuar os serviços, porque os serviços do Estado são fundamentais”, justifica Sundfeld, que também é presidente da SBDP (Sociedade Brasileira de Direito Público).

O professor argumenta também que trabalhadores temporários têm sido importantes para melhorar a qualidade dos serviços públicos — e cita a área da educação como exemplo. “Como é temporário, eles conseguem repor rápido e não falta professor na sala de aula”, explica.

No entanto, defende a criação de regras mais claras para garantir direitos, dar transparência e regulamentar esse tipo de contratação. “Não dá para imaginar que toda administração pública vai ter trabalho temporário. Não vai conseguir fazer a fiscalização da Receita Federal com trabalho temporário”, exemplifica.

Por fim, Sundfeld fala ainda sobre a importância de controlar supersalários, principalmente no poder judiciário, e faz uma proposta. “Nós vamos saber quanto é que eles estão gastando percentualmente da folha com indenizações [os chamados ‘penduricalhos’], fazer uma projeção de diminuição para os próximos anos e colocar na lei de responsabilidade fiscal”, descreve.

Confira a seguir a íntegra da entrevista.

O grande nó da reforma administrativa é conciliar a necessidade de avaliação dos servidores públicos (prevendo até uma possível demissão em caso de desempenho não satisfatório) com a estabilidade inerente ao cargo. Como resolver esse dilema?

O grande desafio é implantar um sistema de avaliação que hoje não existe. Para isso, nós não precisamos de lei nenhuma.

Não dá para você fazer um sistema de avaliação de desempenho das pessoas a partir da opinião do chefe. Nós não temos na administração pública brasileira um sistema de planejamento das metas de cada órgão. Existem tentativas um pouco mais maduras, em lugares específicos. No sistema mais sofisticado que eu conheço, nas universidades públicas, os professores que estão no nível de pós-graduação são avaliados.

Por que eu estou citando isso? Porque a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que foi quem iniciou esse movimento, não precisou de nenhuma autorização legal para fazer nada disso. Ela usou o poder que ela tem de avaliar para induzir os programas de pós-graduação a controlar e incentivar a produção e outros fatores de atuação do seu pessoal.

Como expandir essas experiências para outros órgãos?

Para cada área, a coisa é completamente diferente. O primeiro passo é criar um conjunto de planos, que vão depois gerar os pequenos planos. Isso vai chegar no nível individual, e depois tem a avaliação a cada ano, a cada quadriênio. Para isso, não precisa mudar lei, não precisa mudar coisa nenhuma. Você precisa começar.

Uma das principais discussões no Congresso é sobre o fim da estabilidade dos servidores públicos, ou sobre a limitação da estabilidade a carreiras típicas de estado, como a de juízes e promotores. Sindicatos dizem que a revisão da estabilidade pode afastar profissionais da carreira pública e expor servidores a pressões políticas dos governos de ocasião. Qual é sua avaliação?

O debate sobre a restrição da estabilidade tem dois lados. Um que é ligado ao desempenho: a suposição de que você, em relação a servidores estáveis, tem mais dificuldade de incentivar o desempenho do que em relação aos não estáveis. Mas tem outra razão: o que se imagina é que, se não houver estabilidade, você tem mais facilidade de adaptar a folha de pagamento aos recursos disponíveis no ano.

Eu acho que tem um pouco de ingenuidade nas discussões relativas aos dois fatores. A capacidade de diminuir o número de pessoas, em função da perda de recursos, é baixa para o Estado. Por quê? Porque o estado tem um conjunto de serviços permanentes. É diferente de uma empresa que, se começa a ter uma diminuição da presença no mercado, simplesmente corta uma parte do pessoal.

Esse é um dos impasses do Estado. As pessoas dizem: “Ah, eu não consigo ter estabilidade fiscal, porque eu não consigo diminuir a folha e porque eu não consigo tirar [demitir] as pessoas”. Não é verdade. Você não consegue tirar as pessoas porque não pode descontinuar os serviços, porque os serviços do Estado são fundamentais.

E na questão do desempenho?

A experiência mostra que diminuir a estabilidade não melhora o desempenho. Em 1998, a Constituição foi mudada e a estabilidade, que era adquirida depois de dois anos de exercício, passou a ser adquirida após três.

Aumentou o número de pessoas não confirmadas nas carreiras? Não. Por quê? Porque não tem avaliação de desempenho. Você pode acabar com a estabilidade, aumentar o prazo de aquisição de estabilidade para dez anos. Não faz a menor diferença, as pessoas vão ficar nos cargos.

Na PEC 32, utilizada como base para as discussões sobre a reforma administrativa desde o governo Bolsonaro, uma das principais diretrizes é a possibilidade de terceirizar atividades típicas do setor público e aumentar a contratação de temporários. Isso não pode significar a extinção do funcionalismo público?

Os temporários não têm estabilidade e estão crescendo na administração [pública]. Em educação municipal e estadual, mais da metade dos professores hoje é temporária. A educação brasileira está piorando ou está melhorando? Está melhorando. Será que é porque são temporários? Talvez não necessariamente por isso, mas isso pode ser um fator que esteja ajudando. Por quê? Porque, como é temporário, eles conseguem repor rápido e não falta professor na sala de aula.

O que há de potencialmente negativo no trabalho temporário? É que cada município e cada estado tem suas regras sobre o trabalho temporário. E isso dificulta a existência de um trabalho temporário com uma qualidade homogênea.

Foi protocolado um projeto de lei, da deputada Tabata Amaral (PSB-SP), para criar uma lei nacional do trabalho temporário para o setor público. Ele tem se mostrado muito importante nas áreas sociais, mas é preciso garantir direitos mínimos para os trabalhadores e mais transparência.

Não precisa acabar com a estabilidade [dos servidores públicos]. É simplesmente poder usar de maneira mais adequada o trabalho temporário. Hoje tem alguns lugares em que ocorrem abusos. O trabalhador temporário fica 30 anos. Isso não é trabalhador temporário, né?

Agora, não dá para imaginar que toda administração pública vai ter trabalho temporário. Não vai conseguir fazer a fiscalização da Receita Federal com trabalho temporário. Simplesmente, não dá.

A Reforma Administrativa está diretamente ligada ao controle das contas públicas. Servidores com rendimentos acima do teto de R$ 46 mil representam 0,06% do contingente total. A cada dez funcionários públicos, sete ganham até R$ 5 mil. Como enfrentar interesses corporativos poderosos e acabar com os chamados “supersalários”, principalmente no judiciário?

Nós não temos um problema generalizado de supersalário na administração. O que nós temos é desigualdade, muita desigualdade.

No sistema de Justiça, é muito impactante. Por que isso aconteceu? Tem muitas razões. Uma delas é porque o judiciário e o Ministério Público, na Constituição, receberam autonomia financeira.

Quanto é o percentual do orçamento que esse pessoal recebe? Isso não está determinado na Constituição. Se eles estão pagando remunerações altas demais, é porque nós estamos dando dinheiro demais para eles. É simples assim.

O que foi acontecendo é que no Judiciário, no Ministério Público, sobra dinheiro para eles pagarem indenização [popularmente conhecidos por “penduricalhos”]. Tem duas maneiras para resolver isso. Uma maneira é colocar na lei de responsabilidade fiscal uma obrigação de reduzir o percentual utilizado em indenização.

Outra maneira é a que o Congresso Nacional tentou criar — até agora não foi muito bem-sucedido. É editar uma lei nacional estabelecendo o que pode ser pago como indenização, tentando uma regulamentação geral. Um projeto de lei foi construído em torno disso, está no Senado no momento. O problema é que o resultado disso até o presente momento é ruim porque, por força do lobby, a lista que eles conseguiram colocar de indenizações possíveis de alguma maneira consolida o que eles já fazem.

Então, uma via alternativa seria fazer um percentual máximo de despesa com indenização. Para isso nós dependemos de contas. Quer dizer, nós vamos saber quanto é que eles estão gastando percentualmente da folha com indenizações, fazer uma projeção de diminuição para os próximos anos e colocar na lei de responsabilidade fiscal. Aí é uma regra mais simples. E eu acho que é negociável, inclusive, com a magistratura.

A negociação a respeito de uma mudança global é feita com a cúpula do judiciário. E a cúpula do judiciário — especificamente, quem está no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e no Supremo — não é beneficiada por esse modelo. Os ministros do STF não recebem as indenizações que o juiz de primeira instância recebe. É uma coisa completamente paradoxal: o juiz de primeira instância ganha mais que o ministro do Supremo.

Link da publicação: https://economia.uol.com.br/colunas/carlos-juliano-barros/2025/07/08/diminuir-estabilidade-nao-melhora-desempenho-de-servidor-diz-pesquisador.htm

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