Sistema atinge 57,5 milhões de usuários e avança em portabilidade e marketplace de crédito
Valor
O “open finance”, ou sistema financeiro aberto, venceu as resistências iniciais dos consumidores, temerosos em relação à segurança, e dos bancos, que se preocupavam em abrir dados para os concorrentes. Hoje, no Brasil, 57,49 milhões de clientes já permitem o compartilhamento de suas informações entre instituições financeiras e a tecnologia tem se tornado uma ferramenta para melhorar o atendimento, com novas funcionalidades a caminho. A leitura é de Ana Carla Abrão, eleita em janeiro a primeira presidente da Associação Open Finance, a estrutura de governança do sistema, que reúne representantes das instituições participantes do mercado.
Para a economista, algumas instituições financeiras já começam a ver no open finance uma ferramenta para melhorar a oferta. “Trata-se da forma como você vai servir seu cliente. Se ele não tiver aderido ao open finance, você tem menos possibilidades de ofertar produtos e serviços a ele”, afirma Abrão ao Valor na sua primeira entrevista desde que assumiu o cargo.
O objetivo do open finance quando foi lançado era combater a assimetria de informação. Segundo a economista, sempre houve grande competição no setor financeiro, mas os bancos não disputavam os mesmos clientes porque cada um conhecia os seus usuários muito melhor. O sistema aberto vinha justamente para “acabar com esse empoçamento”. Agora, com essa etapa vencida, vai se diferenciar na nova fase quem souber usar as informações disponíveis para atender melhor o cliente.
O sistema ainda tem evoluções pela frente, como o desenvolvimento de um “marketplace” com ofertas de crédito.
Os passos mais imediatos devem ser os que foram listados pelo Banco Central (BC), que colocou o open finance na lista de prioridades regulatórias para o biênio 2025/2026. São, principalmente, melhorias operacionais no ecossistema, medidas que devem ajudar o uso do modelo por pessoas jurídicas e facilitar a portabilidade em operações de crédito.
A portabilidade de contratos por meio do open finance deve começar com o crédito pessoal, seguida pelo consignado federal e depois por outras linhas. “A prioridade agora é a portabilidade, pelo impacto que vai ter, pela própria complexidade que gera”, diz Abrão. Uma das questões a ser resolvidas diz respeito ao ressarcimento dos custos da instituição que originou o crédito pela que “herda” o contrato.
No médio prazo, Abrão prevê o desenvolvimento de um marketplace de crédito, um ambiente no qual o cliente que compartilhar seus dados receberá ofertas não só de seu banco, mas de outras instituições financeiras – o que deve tornar mais palpável a promessa do open finance de estimular a competição e reduzir os juros.
“O BC quer criar, dentro do open finance, o que a gente chama de marketplace de crédito. Você chega nesse marketplace e coloca uma proposta: ‘quero pegar um crédito imobiliário para comprar um apartamento, tal valor, e está aqui meu consentimento para quem quiser me fazer uma oferta’”, exemplifica. Então, a pessoa poderá analisar, nesse ambiente, que provavelmente será dividido por linhas de crédito, todas as propostas que receber. “Vai evoluir para isso, mas não estamos lá ainda.”
Seria, de certa forma, um modelo parecido com o que foi feito neste ano com o novo crédito consignado privado, em que se criou um marketplace dentro do aplicativo da Carteira de Trabalho Digital (CTPS). Só que, no caso do open finance, seria possível receber ofertas para vários tipos de linhas e com taxas que levem em conta toda a vida financeira do cliente, e não só onde trabalha, quanto ganha e como gasta seu dinheiro.
O cenário também lembra o que foi descrito certa vez pelo então presidente do BC Roberto Campos Neto. Segundo ele, o mercado poderia evoluir para ter um “superapp” que consolidaria os vários aplicativos de bancos que existem hoje. Na ocasião, a declaração gerou polêmica, não foi bem entendida e houve até quem pensasse que o BC criaria esse aplicativo, competindo com os bancos.
A lógica, diz Abrão, que é o cliente acabe concentrando a maior parte da vida financeira no aplicativo de um único banco, por meio do qual será possível gerenciar as contas que tem em várias instituições, com a ajuda do open finance. De acordo com ela, a tendência vai ao encontro da disputa que os bancos vêm travando pela chamada “principalidade” do cliente – ou seja, para ser o principal provedor de serviços financeiros dele.
Com o open finance, segundo Abrão, um banco poderá fazer ofertas mais direcionadas de produtos e serviços se tiver informações, por exemplo, sobre os investimentos que o cliente tem em um concorrente ou se perceber que está buscando crédito imobiliário.
“A questão da ‘principalidade’ não significa que o cliente vai consumir todos os produtos de um único banco, mas que, através de um único app, vai gerenciar outras contas. Quando os bancos tiverem essa mentalidade, essa mudança de chave, vão perceber que é melhor que eles sejam esse canal onde o cliente concentra transações. Se o banco ficar parado, fingindo que isso não está acontecendo, o canal preferencial não vai ser ele.”
Sem citar nomes, a presidente da associação do open finance afirma que algumas instituições já se deram conta disso, enquanto outras são mais reativas.
A criação do open finance – inicialmente chamado de open banking – foi regulamentada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) em 2020 e implementado gradualmente a partir do ano seguinte. Hoje, o Brasil tem o maior sistema financeiro aberto do mundo. “Precisamos lembrar que o open finance brasileiro foi o mais rápido, o mais agressivo do ponto de vista de dados, e ainda incorporou pagamentos, então foi muita coisa em um prazo pequeno”, diz.
‘Principalidade não significa que cliente irá consumir de um só banco, mas vai concentrar operações em um único canal”
Até agora, o BC fez um acompanhamento muito próximo, inclusive no nível operacional. Isso ainda deve acontecer, mas, à medida que o sistema ganha maturidade, deve começar a ter mais independência e, para o próximo ciclo, a expectativa é que a estrutura de governança – formada por associações setoriais – defina sua agenda de maneira mais autônoma.
Em janeiro, a governança do open finance ganhou novos contornos, com uma estrutura definitiva, capitaneada por uma associação que reúne diferentes participantes do setor financeiro. Abrão foi indicada pela Zetta, associação que representa fintechs como o Nubank, mas acabou sendo apoiada por outros grupos, inclusive a Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
A executiva tem longa carreira ligada ao mercado financeiro, com passagens por Itaú Unibanco e B3. Atuou na consultoria Tendências, também foi funcionária de carreira do BC e secretária de Fazenda de Goiás. Quando estava na consultoria Oliver Wyman, em 2017, participou dos primeiros projetos em conjunto com o regulador para trazer o open finance para o Brasil.
Agora, está à frente do maior sistema de open banking do mundo – não só em termos de usuários, com 57,49 milhões de consentimentos ativos únicos, mas também em volume de chamadas de API, as interfaces bilaterais que conectam um banco ao outro.
O crescimento se deu, lembra Abrão, mesmo sem uma campanha de divulgação, que nunca chegou a ser feita de forma massiva pelo BC ou mesmo pelos bancos participantes. “Se sem comunicar, a gente chegou a 57 milhões de consentimentos únicos, não tenho dúvidas de que vamos chegar aos 200 milhões só pelo fato de que as pessoas estão começando a ver de maneira palpável as funcionalidades e os benefícios”, afirma.
Agora, a associação deve criar um “hotsite” para aproveitar o acesso grande que o site do open finance já tem, além de preparar campanhas em redes sociais. A expectativa é que os bancos também comecem a falar mais do assunto em suas ações publicitárias para destacar os benefícios do sistema.
Em algumas áreas, afirma, os casos de uso começam a ficar mais concretos. Ela cita como exemplo o mercado de investimentos. Atualmente, quando um cliente compartilha dados, é comum que bancos e corretoras, ao analisar as aplicações que ele tem, ofereçam ativamente opções mais rentáveis. Os serviços de pagamentos também avançaram, inclusive com a convergência com o Pix – usando a figura do iniciador de transações de pagamento (ITP), que faz a conexão entre o Pix e outras funcionalidades que rodam no trilho do open finance, como o Pix Automático.
Para Abrão, um segmento que ainda precisa avançar são as soluções de open finance para empresas. Um dos gargalos é definir quais os funcionários dentro de uma companhia que têm autorização para dar o consentimento e movimentar as contas. “Esse é um desafio que já existe na indústria há muito tempo, não só para o open finance. A discussão que estamos tendo agora é como resolver isso. Uma possibilidade é existir uma padronização entre as instituições financeiras, mas é um investimento longo e lento, porque os sistemas já estão parametrizados”, afirma. “Outra opção seria ter um banco de dados central que agregue informações de juntas comerciais, cartórios, e tenha essas informações de firmas e poderes.”
À medida que o open finance avança, a expectativa é que amplie sua relação com outros sistemas de compartilhamento que não estão exclusivamente sob a alçada do BC, como o open capital markets, que está também sujeitado à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e o open insurance, que fica na alçada da Superintendência de Seguros Privados (Susep).
Segundo a executiva, é possível que o open investment acabe entrando na Associação Open Finance. “Vamos ter uma discussão de planejamento estratégico no segundo semestre para ver qual o próximo passo do open finance, para além das funcionalidades que já estão previstas hoje”, diz.
Com a nova estrutura de governança, o Banco Central deixou de ser o responsável pela secretaria do open finance, mas, naturalmente, mantém seu papel de regulador. Além de participar como observador em diversas instâncias, recebe as sugestões da associação e tem a palavra final sobre as regras. Pode, inclusive, reverter eventuais decisões da associação com as quais não concordar. “A ideia de criar a associação é também que o BC saia um pouco do dia a dia, porque até janeiro ele participava das reuniões semanais de todos os grupos de trabalho, já que não existia uma estrutura fixa, um corpo executivo”, afirma.
Hoje, a Associação Open Finance conta com 140 funcionários, responsáveis pela manutenção do sistema, com um orçamento total de cerca de R$ 170 milhões. Como não existe uma central que guarda dados dos clientes – a comunicação é bilateral, entre os bancos autorizados pelo BC -, não há risco de um vazamento de informações, afirma a executiva. Ainda assim, como toda estrutura tecnológica, o sistema estaria sujeito a eventuais ataques hackers, que se bem-sucedidos poderiam interromper a comunicação entre as partes. “Tudo está na nuvem”, afirma.
Em dezembro, quando definiu a estrutura definitiva de governança, o BC teve de arbitrar e decidir uma disputa que envolvia grandes bancos, de um lado, e instituições menores e fintechs, do outro. Os grandes reclamavam que pagavam 80% da conta para manter o open finance, mas só tinham 17% dos votos. Os menores, por sua vez, argumentavam que a infraestrutura é um gasto fixo, e dividi-lo de acordo com o tamanho da base de cliente de uma instituição, que muda com muita frequência, traria diversos problemas. No limite, poderia desestimular empresas menores a aderir ao projeto.
O BC acabou encontrando um meio termo. A Febraban ficou com dois assentos no novo conselho – que tem dez membros – e ficou definido que a contribuição continuará sendo por tamanho do banco, mas limitada a um teto a ser financiado pelas maiores instituições financeiras, com o restante sendo dividido pelas centenas de outros participantes.
Um ponto que permanece em aberto é o eventual ressarcimento que um banco deveria pagar ao outro pelas chamadas de APIs. A lógica é que as instituições gastam tempo, dinheiro e pessoal para atender os pedidos de compartilhamento de dados. Assim, poderia ser estabelecida uma espécie de pagamento para os valores que ultrapassassem certo limite. “Volta e meia essa discussão reaparece, até porque tudo que é gratuito acaba criando incentivos para não utilizar da forma mais eficiente possível. Mas o BC sempre resistiu a isso porque queria primeiro garantir a implementação do sistema. Acredito que, à medida que a gente vê a evolução das chamadas, do número de consentimentos, da maturidade do sistema, essa discussão pode vir à tona”, diz Abrão.
Para a executiva, as funcionalidades do open finance estão só começando. Um frente em que podem surgir soluções é na prevenção a fraudes e combate a golpes. Um projeto de uma fintech permite que, ao ter o celular roubado, o cliente possa bloquear todos os aplicativos de bancos com apenas um comando. “O fato de o open finance ter a interoperabilidade por desenho, ou seja, todo mundo está conectado, em um ambiente seguro, certificado, permite criar muita coisa em cima. Depende da criatividade e capacidade de desenvolvimento dos participantes”, diz. “É uma revolução mais silenciosa que o Pix, mas é uma revolução na relação entre o consumidor de serviços financeiros com as instituições, de uma forma muito relevante, estrutural”, afirma.
Link da publicação: https://valor.globo.com/financas/noticia/2025/07/14/open-finance-evolui-e-deve-trazer-novas-solucoes.ghtml
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