O movimento do real nesse ano (ganho de 11%), não é notavelmente diferente do que se observou em outras economias emergentes
Valor
Desde o início do ano o dólar declinou cerca de 8% contra a cesta de moedas de seus principais parceiros comerciais. O dólar no mundo ajuda a explicar o dólar no Brasil: o real, que tinha depreciado mais que seus pares no final de 2024, apreciou 11% contra a moeda americana nesse período.
Existem várias explicações — não mutuamente excludentes — para o movimento do dólar vindas de movimentos estruturais e conjunturais da economia americana. Do lado da política fiscal, cortes de impostos, sem compensação plena pelo lado da despesa, implicam déficits fiscais (nominais) na faixa de 7% do produto a partir de 2026, mesmo contando com uma contribuição importante, do lado da receita, do aumento das tarifas comerciais. Para colocar em perspectiva, o déficit médio desde 1975 atingiu apenas 3,8% do PIB. Dada essa trajetória do déficit, a dívida em poder do público deve atingir 110% a 120% do produto no final da década. As críticas recorrentes e intensas a um suposto conservadorismo do Fed, e mesmo a sua independência, têm levado alguns observadores a opinar que o país estaria em vias de entrar em cenário de dominância fiscal. O balanço de pagamentos dos EUA também inspira certa preocupação, dado que o déficit em conta corrente se situa em 4,2%, bem maior do que a média de 2,7% observada desde 2010. Trazer o déficit de volta à média histórica, a julgar por modelos usuais, iria requerer substancial depreciação adicional da moeda. A incerteza sobre tarifas e outros aspectos da política econômica também contribuem para enfraquecer o dólar, principalmente pelos questionamentos sobre a sustentabilidade do chamado “excepcionalismo americano”, que vinha sendo um consenso entre analistas nos últimos anos, o que se refletia na alocação de capital. Nesse contexto, a tendência é que esses fatores continuem a pressionar a moeda, a menos que ocorra um aumento da aversão ao risco em escala global.
Isso não quer dizer que o dólar vai deixar de ser a moeda de reserva do mundo. Esse status deve ser preservado por muitos anos, diante da ausência de alternativas viáveis. Cabe lembrar, também, que a vantagem mais importante da economia americana, o eixo universidade-inovação-mercado, subsiste, ainda que talvez abalado por restrições à imigração. Chama atenção, também, que, a despeito de um importante choque de incerteza, as revisões baixistas de crescimento econômico têm sido relativamente pequenas e a economia americana tem se mantido relativamente resiliente. Outro ponto: outros países/blocos podem não estar confortáveis com um fortalecimento supostamente excessivo de suas moedas — preocupações nessa linha já foram manifestadas por autoridades europeias. Cabe notar, contudo, que a imposição de barreiras comerciais que limitem a capacidade das demais economias adquirirem dólares pode, no limite, reduzir a disponibilidade da divisa no mundo, e, assim, sua atratividade como moeda de reserva.
Historicamente, estamos vendo um movimento importante da moeda americana, mas nada muito diferente dos ciclos que ela já mostrou nas últimas décadas. Especificamente, desde o início dos anos 1980, o dólar teve três grandes ciclos de depreciação, três miniciclos, e o movimento atual. O primeiro, entre março de 1985 e dezembro de 1988, ocorreu depois do Acordo do Plaza (o hotel em Nova York onde ocorreram as negociações), no qual os países do então G5, o grupo de maiores economias capitalistas, concordaram em intervir no mercado para enfraquecer o dólar, o que aprofundou uma tendência de enfraquecimento já iniciada. O ciclo acumularia uma depreciação cumulativa de 30%. O ciclo seguinte foi o mais longo, de fevereiro de 2002 a abril de 2008, e combinou um período de política monetária laxa nos EUA com o boom de commodities e crescimento acelerado em outras economias, acumulando depreciação de 26%. O terceiro seguiu-se à grande crise financeira de 2008-2009, um período de crescimento relativamente fraco nos EUA, e durou de fevereiro de 2009 a julho de 2011, com depreciação de 17%. Os miniciclos tiveram duração entre oito e treze meses, com depreciação acumulada entre 9% e 13%.
No ciclo atual, observamos uma queda do dólar, em termos multilaterais, de 8%, desde o início do ano. A julgar simplesmente, sem contextualizar, pelos ciclos anteriores, a depreciação poderia se prolongar e aprofundar consideravelmente. Considerando a taxa real efetiva, mesmo com o movimento ocorrido desde o início do ano, o índice atualmente se encontra em torno de 114,0, sendo 12% acima da média histórica de 101,7. Isso indica que haveria considerável espaço para depreciação adicional — a menos que a volta para a média ocorra por meio de uma queda intensa da inflação americana.
O movimento atual da moeda americana não é nada muito diferente dos ciclos que ela já mostrou nas últimas décadas
Dado o cenário para o dólar no mundo, cabe examinar o que pode ocorrer com o dólar aqui. Em primeiro lugar, vale reconhecer que o movimento do real nesse ano (ganho de 11%), não é notavelmente diferente do que se observou em outras economias emergentes, a despeito do patamar muito mais elevado de taxas de juros, o qual tem sido compensado pelo prêmio de risco. Considerando que a taxa de juros permaneça estável até o final do ano, o que parece consistente com a comunicação do banco central, a trajetória do dólar aqui vai depender do seu comportamento global (medido por um índice multilateral) e da evolução do prêmio de risco (que, por sua vez, é bastante sensível ao quadro fiscal).
Economistas do Itaú estimam que, com o prêmio de risco e o índice do dólar nos patamares atuais, o real deveria estar sendo negociado próximo de R$ 5,50 por dólar, não muito distante do patamar atual. Supondo que o risco país nem melhore, nem piore, daqui para o final do ano, mas que o dólar global recue ao patamar mínimo observado depois da pandemia, a estimativa estaria próxima a R$ 5,10. E se o dólar global ficar estável até o final do ano, mas o prêmio de risco declinar para o patamar mínimo pós-pandemia com, por exemplo, um avanço no enfrentamento da situação fiscal doméstica? Então, a projeção seria próxima a R$ 5,00.
Mas essas contas refletiam a situação anterior à imposição de tarifas às exportações brasileiras pelo governo americano. As exportações brasileiras para os EUA somaram US$ 40 bilhões em 2024. Vale notar que a tarifa efetiva será de aproximadamente 40% (e não os 50% anunciados) se considerarmos produtos isentos (como petróleo) e com taxação diferencial (como automóveis e peças). No entanto, isso parece ser uma estimativa exagerada, pois exportações podem ser deslocadas para outros mercados. Se assumirmos apenas realocação total do fluxo comercial de commodities (que em tese seria mais fácil), o impacto seria mais na ordem de US$ 10 bi. Assumindo também realocação parcial das exportações de manufaturados (50%), o impacto cairia ainda mais, para perto de US$ 5 bilhões.
A elasticidade da taxa de câmbio em relação ao fluxo cambial indica que um impacto entre US$ 5 e US$ 15 bilhões leva a depreciação do real entre 4% e 12%. Em resumo, se antes das tarifas o ciclo do dólar (com tudo mais constante) poderia levar a taxa de câmbio para o intervalo R$ 5,10 a R$ 5,20 no final do ano, agora a tendência é que a taxa termine 2025 entre R$ 5,50 e R$ 5,70.
Em resumo, o real deveria seguir em apreciação nesse segundo semestre, ajudado pelo ciclo do dólar, sem necessariamente observarmos melhoras dos fundamentos domésticos. Depois das tarifas, os mesmos precisam melhorar para que a moeda possa se fortalecer mais. Ficou mais difícil.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/mario-mesquita/coluna/o-dolar-seus-ciclos-e-as-tarifas.ghtml
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