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Em rara entrevista conjunta, Pedro Moreira Salles e Roberto Setubal refletem sobre o que tornou o banco a maior instituição financeira privada do país e como encaminhar o próximo século de existência
Um banco que fez 100 anos em 2024 se prepara para chegar aos 200. Em entrevista especial ao GLOBO, que nesta semana também se torna centenário, Pedro Moreira Salles e Roberto Setubal, copresidentes do Conselho de Administração do Itaú Unibanco, admitem que não têm todas as respostas sobre como completar dois séculos, mas ao menos sabem o caminho: “vontade de buscar” e “o espírito de aceitar” a transformação. “Trata-se de um ato de ousadia chegar aos 100 anos neste país”, brinca Moreira Salles enquanto se prepara, ao lado de Setubal, para uma rara entrevista conjunta.
Com números impressionantes — lucro recorde em 2024, de R$ 41,4 bilhões, quase R$ 3 trilhões em ativos e perto dos 100 milhões de clientes —, os líderes do Itaú Unibanco enxergam ainda muito espaço para crescer. A seguir, os principais trechos da conversa deles com O GLOBO, na sede do banco de investimentos Itaú BBA na Avenida Faria Lima, em São Paulo, onde funciona o Conselho de Administração do grupo financeiro.
SALLES: Estamos falando de oito meses ainda, mas a virada dos 100 anos do Itaú reforçou as nossas convicções da necessidade de ser contemporâneo com o seu próprio tempo, o que significa mudanças muito importantes numa empresa centenária. A tecnologia transforma as relações, a maneira pela qual o banco acessa os seus clientes. A relação da empresa com o cliente vai ser cada vez mais granular, mais direcionada ao indivíduo, o tratamento não será massificado. E nós estamos aqui nessa jornada de buscar enfrentar esses desafios que as novas tecnologias, as novas formas de relacionamento empresa-cliente nos impõem. E continuamos não sabendo exatamente quais são todas as respostas, mas sabemos o caminho. E temos a ousadia, a vontade, o espírito de aceitar essa transformação e de buscá-la. Acho que isso é fundamental se você quiser fazer 150, 200 anos.
SETUBAL: A IA é uma tendência nova. Ela ainda não aconteceu hoje, mas é muito visível que ela terá um grande impacto nos próximos anos. Hoje, vejo que vai ter um impacto maior, mais rápido do que eu imaginava há um ano. Isso é uma grande transformação que vem pela frente, sem dúvida. E você tem que estar aberto a mudar.
Uma empresa centenária como o Itaú Unibanco viu vários momentos disruptivos no país e no mundo, mas a velocidade desses eventos passou a ser maior. Como o banco se prepara para este cenário?
SETUBAL: Primeiro, tem que estar prestando atenção em novos entrantes com novos posicionamentos, novas tecnologias. E tem que estar aberto a mudar. Na hora em que você não está aberto para mudar, não está disposto a aprender, você começou a envelhecer de verdade. Essa renovação permanente é essencial para uma empresa que queira sobreviver a um mundo em transformação.
PEDRO: E temos a ousadia, a vontade, o espírito de aceitar essa transformação e de buscá-la. E tem uma característica que é a cultura da empresa. O jeito de você se adaptar, saber que consegue se adaptar, aceitar que tem que se adaptar, depende da dinâmica interna que, em outra instância, é a cultura. Ela provoca a capacidade de indagar, de questionar, de levantar a mão e dizer, não é por aqui. E eu considero que a cultura está consolidada. Você sempre pode melhorar e pode evoluir. Nós achamos que essa é uma vantagem comparativa dessa instituição e que ajuda muito a explicar os 100 anos.
Muitas vezes, as empresas não conseguem desenvolver suas próprias soluções de tecnologia. O Itaú está disposto, por exemplo, a adquirir outras empresas que agreguem esses benefícios?
SETUBAL: A gente sempre olha isso (compra de empresas). Mas, na dimensão do Itaú, é muito difícil você encontrar alguma coisa que vai, de fato, causar um grande impacto. A gente compra frequentemente empresas de tecnologia, incorporamos, tentando plugar em todas as nossas estruturas. Mas, de fato, você tem que mudar dentro de casa. Você não consegue pegar uma empresa pequena e transformar em uma empresa grande. Ela pode ajudar a transformação, cobrir alguma área em que você não esteja bem posicionado, trazer tecnologia nova. Mas você tem que pegar essa nova tecnologia e colocar para dentro da sua empresa como um todo. Não tem milagre.
SALLES: A gente vem fazendo isso por algum tempo, mas, de fato, você tem que mexer na essência do negócio. Trazer algumas coisas que adicionam, ou cortam caminho. Mas a grande transformação tecnológica começou há vários anos atrás. Como é que você vai para a nuvem? E aí você tem os parceiros. Talvez o mais importante seja escolher os provedores corretos de tecnologia que nos permitem fazer essas transformações, que são conduzidas internamente, mas que são apoiadas na capacidade de prover esse serviço que nós não temos. Em relação à IA, por exemplo, acho que foi a adoção mais rápida na História de uma nova tecnologia.
“Capacidade de se adaptar, de estar aberto, de se transformar é essencial para uma empresa sobreviver nesse mundão
— Roberto Setubal, copresidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco
Acham que existe uma fórmula, ou uma característica comum, às empresas que chegam aos 100 anos? E, especialmente no Brasil, quais foram os principais desafios?
SALLES: Estamos falando de 100 anos, então a lista de desafios é longa. O país era essencialmente rural, 85% da população morava no campo. Hoje é exatamente o contrário. Imagine as transformações pelas quais esse país passou para poder chegar onde está hoje, num ritmo de migração que talvez não exista em outra sociedade. Quando se fala de coisas mais próximas da nossa época, eu acho que seis planos econômicos em cinco anos é um negócio meio avassalador. Por outro lado, foi isso que permitiu àqueles que sobreviveram se adaptar. Quem tinha capacidade de se adaptar, conseguiu fazer a transição, mas muitos ficaram pelo caminho.
SETUBAL: Acho que a capacidade de se adaptar a novos cenários, de estar aberto, de se transformar, isso é essencial para uma empresa sobreviver nesse mundão. Todos os planos econômicos foram um desafio, mas talvez o Plano Collor tenha sido o mais complicado. Os planos foram eventos. Se existe um elemento no mundo, especialmente no mundo financeiro, que causou impactos gigantescos, e continua causando, é a tecnologia. Se você volta para 1950, início dos anos 1960, não havia computadores nos bancos, que eram empresas que tinham um balancete. E era uma agência no centro da cidade, Campinas, São Paulo, Santos. Portanto, não era uma agência de fácil acesso à pessoa física. E tudo isso foi viabilizado por tecnologia. Então é um desafio permanente no sistema financeiro, porque não tem um produto físico. O sistema financeiro é serviço puro, informação pura, e onde a tecnologia se dissemina mais rapidamente. Os bancos introduziram o computador, ATMs (caixas eletrônicos), internet, banco on-line e agora nuvem, IA. Com o celular e com dados, você consegue dar crédito sem conhecer a empresa, sem conhecer a pessoa, só com base em informação. É uma transformação permanente e um desafio constante.
A tecnologia também traz o desafio da segurança, e o cliente está sempre preocupado com isso. Como o banco trata essa questão?
SALLES: Segurança não é um desafio só nosso, mas de todas as empresas em geral. Óbvio que, no nosso negócio, você está protegendo o patrimônio do cliente. Então, a responsabilidade é muito maior. É uma área de grande desenvolvimento dentro do banco. É muito competente. Mas sempre é preciso fazer mais e melhor.
SETUBAL: Quanto mais tecnologia você tem, os outros (golpistas) também usam a mesma tecnologia que você. Um diretor do banco dizia que é a eterna luta entre o escudo e a espada. Você faz uma espada melhor, alguém vai fazer um escudo melhor. Então, isso não tem fim. É uma disputa que sempre houve.
O Itaú consolidou-se como o maior banco privado do país. Como manter esse crescimento?
SETUBAL: No Brasil, o Itaú tem uma presença grande. Mas tem áreas do mercado em que é possível ampliar a participação, em setores específicos. Seguros, por exemplo, a gente vê como uma área em que o Itaú está aquém do seu potencial. E expandir no exterior também, mas com mais dificuldade do que poderia ter acontecido há 15, 20 anos. Se internacionalizar tem uma série de restrições estruturais, legais, tributárias, fatores que dificultam muito. Uma empresa do tamanho do Itaú fica, de alguma forma, muito atrelada ao crescimento interno do país. O sistema financeiro tem crescido nesses últimos 20, 30 anos, no mundo inteiro, mais do que o PIB. Então, naturalmente tem um crescimento razoável. Mas, se o Brasil crescer 3%, 4%, o crescimento será brutal.
SALLES: Se você olhar os modelos globais de bancos, os modelos tradicionais, eles estão retrocedendo. Banco é escala. Se você tentar entrar em algum país onde você não tem escala, é muito difícil. Só olhar o que aconteceu aqui com quem tentou entrar sem escala. Por outro lado, talvez as novas tecnologias permitam você levar alguma coisa de produto financeiro para outro caminho. Não sabemos ainda, mas pode ter uma nova dinâmica que não esteja limitada à sua geografia.
Seis planos econômicos em cinco anos é avassalador. Quem tinha capacidade de se adaptar, conseguiu fazer a transição, mas muitos ficaram pelo caminho
— Pedro Moreira Salles, copresidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco
A chegada das fintechs, os bancos digitais, impactaram a forma de gestão do Itaú?
SALLES: Sem dúvida. Volto à questão da cultura. Tivemos que aprender a ser mais ágil, a diminuir o número de níveis que tinha que passar para tomar uma decisão. Teve que delegar mais, fazer as pessoas trabalharem entre grupos diferentes, entre especialidades diferentes. Colocou-se um desafio, e a cultura permeável ajudou a reorganizar o banco para ter um tempo de resposta ao mercado muito diferente do que a instituição tradicional, hierárquica tinha. O grau de autonomia tem que ser outro.
SETUBAL: Essa mudança na gestão também foi muito impulsionada pela tecnologia nova. A tecnologia possibilitou ter informação muito mais rápida, permite tomar decisões que rapidamente são implementadas. Coisas que demoravam seis meses, hoje estão na rua semana que vem. Isso exige toda uma reformulação, uma reorganização interna para usar esse potencial. E é preciso estar aberto a usar o pleno potencial que a tecnologia oferece. Na estrutura antiga, apenas a tecnologia nova não ia adiantar sozinha.
Como avaliam essas novidades que o regulador está trazendo ao sistema financeiro, como Open Finance, entre outras?
SETUBAL: O sistema financeiro é o setor mais regulado do mundo. Tivemos uma grande mudança na crise de 2008, com muitas mudanças significativas, que foram bem feitas e estão no caminho correto de dar mais solidez ao sistema financeiro no mundo todo. Acho que a preocupação do regulador é criar condições para o mercado se desenvolver de um lado, mas manter uma solidez importante no sistema porque está mexendo com a economia popular. Essa questão de mexer com a economia popular obriga a uma grande regulamentação. O sistema financeiro é sempre muito regulado, porque ele vai criando novas situações, a tecnologia vai trazendo novas oportunidades que vão exigindo isso. O mercado sempre está na frente da regulamentação. A regulamentação vem atrás e vai acontecendo. Acho que a tendência vai continuar. Isso não muda, vai ser sempre muito regulado. Você tem cripto, que está sendo regulado.
Como avaliam o impacto do Pix nesse cenário de novas tecnologias?
SETUBAL: Foi extremamente positivo, trouxe inclusão bancária. E foi muito bom para os bancos. Ampliou a bancarização e deixamos de ter uma série de problemas. O uso de numerário, de nota, é muito caro. E tem transporte (de valores), segurança. Isso diminuiu brutalmente.
SALLES: Em algumas sociedades, você já não tem mais dinheiro. Em outras ainda tem, mas não é o meio principal de pagamento.
Como vocês veem essa instabilidade atual no cenário internacional? Quais os impactos para o Brasil?
SALLES: Com o impacto inevitável nas relações internacionais, no comércio global, o Brasil poderia se posicionar de alguma maneira, se beneficiar dessa incerteza que está sendo gerada entre antigos parceiros, que deixam de ser parceiros, ou que não sabem se serão parceiros e por quanto tempo. O Brasil tem uma enorme vantagem comparativa no agro. À medida que barreiras comerciais, impostos, tarifas são levantadas, isso abre uma avenida para o Brasil. Acho que a nossa matriz energética, com todos os seus problemas, é uma das mais limpas. Se você souber aproveitar, é possível atrair investimentos de quem busca desenvolver o seu produto, a sua indústria, com menor impacto ambiental. Se o Brasil souber agir com estratégia e diplomacia, acho que tem uma oportunidade, porque a incerteza que está sendo gerada no mundo precisa de uma resposta. Eu acho que o Brasil pode usar isso a seu favor. Se o fará ou não, é prever o futuro. Mas acho que dá para olhar isso como um campo com oportunidades.
SETUBAL: Acho que as macrotendências do mundo não mudaram. Os EUA continuarão sendo uma grande potência, crescendo mais do que a Europa, se distanciando do ponto de vista econômico e de inovação. A China continuará tendo um crescimento maior, embora não tão destacado. Alguns países periféricos vão se beneficiar. Não vejo grandes tendências ainda. Acho que (Donald) Trump vai ter seu impacto, mas não acho que mude a tendência das coisas como um todo.
Hoje o país é melhor do que era, há dez, cinco anos. Evoluiu. Mas poderia ter sido mais rápido
— Roberto Setubal, copresidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco
Quais são os principais desafios da nossa economia? O Brasil é um país que vai dar certo?
SALLES: Eu acho que existe a consciência de que a eterna questão do equilíbrio fiscal é algo que tem que ser perseguido. O Brasil melhoraria muito se houvesse mais confiança de que, de alguma forma, esse problema, esse obstáculo, fosse resolvido. Mas, sem olhar a estrutura na questão do custo, é difícil. Só do lado da receita tem um limite, tem um teto. Vai gerar distorções adicionais. Eu acho que há um desafio, que é um desafio político. Temos que encontrar uma solução política. Todo mundo conhece o problema, sabe que, no tempo, ele só tende a se agravar se não se lidar com ele corretamente. Acho que essa página foi virada. A questão é como é que se executa. É uma pena que a gente só lida, de fato, com os problemas quando há uma crise iminente. É chato ficar falando das reformas estruturais, mas se algumas coisas não forem, de fato, administradas, endereçadas, com coragem, com uma certa ousadia, você vai ficando assim, stop and go (para e anda), o voo de galinha. O que não significa que, se você olhar num horizonte de anos, a gente não esteja melhor do que estava. Mas, de novo, o ritmo poderia ser muito diferente.
SETUBAL: Na minha vida profissional, o Brasil hoje é melhor do que o Brasil em que eu entrei. Acho que sim, mas a pergunta é: não poderia ser de forma muito mais rápida? Hoje o país é melhor do que era, há dez, cinco anos. Evoluiu. Mas poderia ter sido mais rápido.
A sociedade tem mudado muito em diversos campos. Por exemplo, há uma mudança de pensamento na questão do emprego, com menor interesse pela CLT. Como avaliam isso?
SALLES: Essa também é uma mudança estrutural. Volto à questão de você se adaptar ou não. Uma parte da sociedade, que é cada vez maior, prefere a flexibilidade e opta por ela. É poder comandar o meu dia a dia, a minha semana, quando quero trabalhar, quando não quero. Por causa da tecnologia, as pessoas estão vendo que é possível trabalhar das 8h às 11h e no resto do dia fazer outra coisa. E essa flexibilidade não conversa com a legislação trabalhista formal. Mais cedo ou mais tarde tem que se adaptar. Não tem volta.
SETUBAL: Acho que o jovem quer ter mais flexibilidade no trabalho, quer ter horários mais flexíveis. Acho que há satisfação das necessidades da empresa e também dos funcionários. Os dois estão querendo isso, e vai acontecer.
Acham que será mais fácil o banco chegar aos 200 anos do que foi chegar aos 100?
SALLES: Mas se você olhar 100 anos atrás, éramos uma “startup”, que tem um grau de mortalidade enorme. Não é que fique fácil, mas você tem a massa crítica. Mas, de novo, isso acontecerá desde que você consiga entender o seu tempo, que você seja contemporâneo dele. Não fique atrás do tempo. Faça as adaptações necessárias. Muitas empresas de décadas e décadas não entenderam que havia uma mudança estrutural e ficaram agarradas àquilo que sabiam fazer. Não olharam para o lado, não viram a ameaça, tinham muitas certezas.
SETUBAL: E tem um elemento adicional, que é você ter dentro da empresa gente competente, qualidade de capital humano. Gente disposta a fazer essa mudança. Você não vai ver nenhuma empresa que sobrevive 100 anos sem ter qualidade de gente, de administração.
Link da publicação: https://oglobo.globo.com/economia/especial/ia-tera-impacto-maior-do-que-imaginavamos-e-preciso-se-abrir-a-mudancas-dizem-lideres-do-centenario-itau-unibanco.ghtml
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