Artigos

Inteligência Artificial e o desafio da energia

É preciso envolver as instituições estaduais, indústria e centros de IA para o Brasil manter um mínimo de soberania e competitividade nesse campo chave

Valor

Os EUA têm dado sinais de priorizar o desenvolvimento da Inteligência Artificial e a obtenção da energia para sustentá-lo. A demanda por energia nos EUA deve crescer até 15% ao ano com a IA, após quase duas décadas estagnada. Satisfazer esse apetite não será fácil, mesmo com o relaxamento regulatório e estímulos financeiros esboçados no Plano de Ação para a IA anunciado pela Casa Branca em julho agora, pois há gargalos até na produção de turbinas a gás.

No afã de facilitar a IA, o Plano de Ação chega a falar no uso de áreas contaminadas nos EUA para instalar centros de processamentos de dados (data centers). A Casa Branca também parece simpática ao plano de Sam Altman da OpenAI, de criar uma rede de data centers para treinar algoritmos de IA nos Emirados Árabes e Arábia Saudita, valendo-se do petróleo e gás natural da região, além de placas solares no deserto. A magnitude desses planos indica o quanto o Brasil terá que se organizar para atrair data centers. De partida, temos que melhorar o manejo e remuneração do parque hídrico para a confiabilidade do nosso sistema elétrico face à expansão das energias renováveis ser barata e não depender demais do gás natural (importado dos EUA?).

O aumento da demanda global por energia, enquanto processadores biológicos ou quânticos não chegam, criou uma corrida pela “mãe” de todas as fontes de energia, que é a fusão nuclear. O caminho é longo, mas a marcha acelerou, inclusive com a ajuda da IA.

Dentre as possibilidades de fusão nuclear, a mais conveniente tem sido a chamada D-T, que ainda assim exige temperaturas perto de 100 milhões de graus Celsius. Ela envolve fundir uma unidade de deutério 2H e uma de trítio 3H, isótopos do hidrogênio com um e dois nêutrons respectivamente, em um átomo de hélio 4He, com a liberação de um nêutron. Há nisso uma ligeira redução de massa e geração de energia segundo a célebre fórmula E = mc2, principalmente energia cinética (~80%) no nêutron emitido.

Em unidades macroscópicas, a fusão de um quilo da mistura de deutério-trítio poderia gerar a energia equivalente à queima de quase 60 mil barris, ou 7.500 toneladas de petróleo. Nesse caso, as 5 bilhões de toneladas de carvão queimadas anualmente para gerar energia na China poderiam ser substituídas por 500 toneladas de D-T. Não é uma produção infinita, mas pode vir a resolver grande parte dos problemas de energia e do aquecimento global, quiçá até 2050. O deutério é abundante e fácil de extrair da água, e o trítio — escasso na natureza — pode em princípio ser obtido da exposição do lítio, abundante na natureza, aos nêutrons gerados na fusão. Além disso, a fusão é muito menos radioativa do que a fissão do urânio.

Dos dois principais métodos explorados atualmente para chegar à fusão, aquela por confinamento inercial (ICF) já se mostrou capaz de gerar mais energia do que a diretamente necessária para iniciar o processo (Q>1), conforme vários experimentos nas instalações do LLNL na Califórnia. Nela, uma cápsula com D-T é alvo de lasers e partículas que geram uma onda de choque que a comprime, aquecendo-a até o ponto de fusão. O método ainda não permite a produção sustentada de energia, já que o equipamento tem que ser reparado cada vez que uma cápsula é bombardeada. Mas tem aplicações militares óbvias.

O segundo método, a fusão por confinamento magnético, promete ser mais sustentável, pois o aquecimento elétrico ou por micro-ondas e a ionização do D-T, isto é, separação de cargas positivas e negativas da mistura resulta em um plasma quentíssimo e indutor da fusão nuclear. Esse plasma tem que ser mantido “flutuando” no interior do equipamento para não destruir suas paredes, o que se consegue com a aplicação de fortes campos magnéticos que limitam os movimentos dos íons. Esse equipamento tem forma de um anel (toro), com a geração dos campos magnéticos internamente nos “tokamaks” ou em bobinas externas nos “stellarators”, como o Wendelstein 7-X alemão. Os nêutrons emitidos, ao se chocarem com o lítio no envoltório do equipamento, geram o trítio e calor, este trocado a seguir com um sistema gerador de vapor destinado a mover as turbinas para geração elétrica.

Tokamaks, inclusive esféricos, são mais simples de construir e populares que os stellarators, apesar de criarem um campo magnético mais instável. O mais famoso deles foi o JET no Reino Unido recentemente desativado depois de 40 anos e a ser sucedido em breve pelo bem maior ITER na França, que associa cerca de 35 países. Antes de fechar, o JET conseguiu manter um processo de fusão por 5 segundos, gerando pouco menos de 20 kWh (suficiente para um carro elétrico andar 150 km, ou 2-3 dias na cidade) com 0.2mg de D-T, mas sem chegar a Q>1.

Os desafios para a fusão controlada ainda são enormes, inclusive na ciência de materiais, mas a dinâmica do setor tem mudado, com investimentos de bilhões em projetos já não experimentais, mas para demonstração, voltados a resultados comerciais. Os EUA têm estimulado start ups que vêm testando agressivamente outros métodos e reatores menores que se valem de imãs supercondutores em alta temperatura: a CFS, originada no MIT, promete uma usina demonstração com Q > 10 já em 2027. A China tem avançado com start ups e programas oficiais de tokamaks (BEST, EAST e CFETR), além de ICFs que podem ultrapassar o LLNL, e todo um ecossistema industrial. Há também projetos com tokamaks na Coreia (KSTAR), Japão (JT-60SA) e Reino Unido (STEP, esférico).

A IA tem sido chave para esse progresso, via algoritmos treinados para antecipar as instabilidades e potenciais fugas do plasma nos tokamaks, com previsão em menos de 100 microssegundos a partir de apenas diagnósticos em tempo real.

O Brasil é o único país do Hemisfério Sul com tokamaks (TCABR, NOVA e o esférico LAP) e importante tradição na área. Mas deixamos o ITER, e o futuro não é tão claro, apesar da planejada modernização do TCABR e algumas parcerias internacionais. A priorização da fusão, inclusive por instituições estaduais, envolvendo nossa indústria e centros de IA, é crucial para mantermos um mínimo de soberania e competitividade nesse campo chave para a humanidade.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/joaquim-levy/coluna/inteligencia-artificial-e-o-desafio-da-energia.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Joaquim Levy