Globo
Quase cinco anos separam esta coluna de estreia no GLOBO da última coluna que escrevi. Tempo que é curto quando medido, mas longo na régua das mudanças. Houve avanços, e a tecnologia não nos deixa ignorá-los, mas também perdemos coisas importantes. Perdemos capacidade de diálogo e tolerância com o diferente. No Brasil, perdemos protagonismo e oportunidades. Quase perdemos a democracia.
Recuperar o espaço público do diálogo talvez seja o maior desafio político do nosso tempo. Esse problema, antigo como a própria política, foi explorado por Cícero em sua obra De Re Publica, escrita no século I a.C. Para ele, uma república — a coisa do povo — só existe quando pessoas diferentes compartilham um mesmo espaço de convivência baseado no respeito às leis e na escuta recíproca.
Cícero nos lembra que o tecido da vida pública não é feito de unanimidade, mas de reconhecimento mútuo. A pluralidade de ideias não é uma falha do sistema, mas sim a sua essência.
O desafio na economia não é diferente. No Brasil de 2025, nos vemos na mesma encruzilhada que já estivemos em outros tempos. Inflação alta, juros elevados e dívida pública crescente. O crescimento desacelera dos 3,4% em 2024 para estimados 2,2% em 2025. A produtividade está estagnada, a desigualdade de renda aumenta, e a criminalidade avança.
Esses números nos remetem a outros momentos em que escolhas difíceis de política pública foram feitas. Ainda que tenha desagradado a muitos, um caminho construído no diálogo prevaleceu. E deu certo.
Hoje os desafios, no campo político e econômico, se veem agravados por uma polarização que transformou o que antes era miopia em surdez seletiva. Se eu não concordo não vale ouvir, apenas atacar. Só os extremos prevalecem. Não há espaço para soluções construídas a partir do contraditório. Só persistem as que atendem aos polos, mágicas e, portanto, ilusórias.
Na economia, os extremos ganham força e nos afastam das soluções reais. No fiscal, responsabilidade é contraposta a desenvolvimento social, como se só existisse a austeridade cega ou a gastança irrestrita. Impera o apelo populista que entrelaça sustentabilidade fiscal a abandono aos mais pobres, transformando em tabu um urgente programa de avaliação e revisão de gastos públicos.
O debate oscila entre o assistencialismo ilimitado e a meritocracia punitiva, como se inexistissem soluções capazes de aliviar a pobreza e gerar inclusão produtiva. E como se outros programas não merecessem acabar, dado que nada resolvem.
Quando o tema é tributação, cuja regressividade é velha conhecida de todos, as opiniões oscilam entre identificá-la como a bala de prata para reduzir a nossa vergonhosa desigualdade social e a defesa de privilégios adquiridos como se direitos fossem.
Não há espaço para a necessária redução de subvenções fiscais injustificadas, para a eliminação das distorções geradas pela pejotização, para a eliminação de penduricalhos imorais.
Mais fácil usar a polarização e justificar o aumento do IOF, um imposto distorcivo e punitivo, com o falso argumento divisionista de pobres contra ricos.
Há outros exemplos, como a já gasta dicotomia entre a perfeição do livre mercado e o controle estatal excessivo, como se um Estado eficiente, produtivo, proativo e provedor de serviços de qualidade não fosse possível— e imprescindível — em um país como o Brasil.
A política existe para equilibrar interesses, não para justificar extremos. O bem comum requer equilíbrio — nem o privilégio de poucos, nem a ruína da ordem. A democracia não é “governo do consenso”, mas “governo das regras que permitem o dissenso”. Daí porque o diálogo precisa ser sempre sustentado, especialmente quando as posições não mudam.
Tolerar o diferente é aceitar o desconforto do outro e sustentar a pluralidade. Isso exige maturidade cívica — algo que falta nas bolhas. Cícero defendia que o diálogo político não precisa gerar consensos, mas deve permitir que múltiplas vozes coexistam sob regras compartilhadas. Isso exige um espaço de deliberação público republicano.
O que temos visto no Brasil, no entanto, é uma substituição da res publica por uma res privata de grupos de interesse, polarizações inférteis e desprezo pela escuta do outro. Sem diálogo e sem soluções equilibradas, é assim que seguiremos.
Link da publicação: https://oglobo.globo.com/economia/ana-carla-abrao/coluna/2025/08/sem-dialogo-nao-ha-republica.ghtml
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