Entrevistas

Qual o sentido da vida? Quantos anos mais teremos? ‘Imortalidade biomédica está no horizonte’

Palestrante do Rio Innovation Week, Eduardo Gianetti lança livro sobre busca pela longevidade extrema e suas implicações éticas

Estadão

“Vale a pena viver para sempre?”, questiona Eduardo Giannetti, autor do recém-lançado “Imortalidades

Professor, economista e escritor, Eduardo Giannetti acaba de lançar o livro Imortalidades (Ed. Cia das Letras), onde, em suas próprias palavras, discute o “anseio humano pela perenidade”. Esse também é o tema de sua palestra no Rio Innovation Week (RIW), que acontece de 12 a 15 de agosto, no Pier Mauá, no Rio de Janeiro — o Estadão é parceiro de mídia do RIW. Giannetti vai falar sobre os dilemas éticos e existenciais envolvidos na busca da longevidade extrema.

Nesta entrevista, Giannetti, também membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), adianta um pouco da discussão. Segundo ele, não se trata mais de uma questão de “se”, mas de “quando” alcançaremos a imortalidade biomédica. “Ela já está no horizonte”, afirmou. A questão, para ele, é: vale a pena viver para sempre? “Viver dez mil anos, 300 mil anos?” E ainda: “Estamos cientes das imensas implicações dessa imortalidade?”

Leia os principais trechos da entrevista:

‘Imortalidades’ é o nome do seu novo livro e também o tema da palestra que o senhor fará no Rio Innovation Week. Como acontece hoje essa busca pela imortalidade?

O tema do meu livro é o anseio humano pela perenidade. A condição humana tem duas características que a diferenciam do restante dos seres vivos. Temos a autoconsciência e, ao mesmo tempo, a consciência antecipada da morte. Como todos os seres vivos, do mais simples ao mais complexo, somos movidos pelo instinto de sobrevivência. Queremos continuar vivos, cada célula do nosso corpo quer continuar viva. No caso do ser humano, por conta das características que mencionei, o instinto de sobrevivência ganha nova e radical dimensão, o anseio de perenidade, de viver eternamente, de não desaparecer, de não deixar a consciência simplesmente se esvair e o corpo morrer.

Como se manifesta esse anseio de perenidade?

De quatro maneiras. A primeira é o prolongamento da vida, a extensão radical da vida por meio da ciência, da tecnologia, da biomedicina, almejando, no limite, alcançar a imortalidade em vida, preservando nosso corpo e nossa consciência de quem somos. Há vários avanços médicos notáveis, o relógio biológico já pode ser revertido. Não desacelerado ou suspenso, mas revertido. A segunda é a crença na vida após a morte. As cinco grandes religiões mundiais (budismo, cristianismo, hinduísmo, islamismo e judaísmo), que reúnem 6 bilhões de adeptos, compartilham duas premissas, não obstante a sua extraordinária variedade de orientação. A vida que conhecemos não é tudo, há outra dimensão. Outra vida depois dessa; a vida aqui, portanto, é passagem. A segunda premissa é: o que virá depois depende do que se faz agora. Ou seja, há relação direta entre o que virá na vida futura e a vida terrena. Embora tenha sido monopolizado e sequestrado pelas religiões, esse tema não é necessariamente religioso. Grandes filósofos do passado especularam sobre a existência após a morte, sendo Platão o maior deles. A terceira forma de manifestação desse anseio de perenidade é o que chamo de expectativas terrenas, a ideia de viver na memória e nos genes das gerações futuras, deixando legado de valor reconhecido. Grandes feitos heroicos, criações artísticas, avanços do conhecimento científico foram motivados pelo impulso de reconhecimento eterno na memória e na cultura de determinada sociedade. É uma imortalidade não supraterrena, mas terrena, por meio da procriação e da criação. A sua vida continua com seus descendentes e com a obra que você deixa. Ao ler um livro do escritor já falecido, entramos com contato com o espírito dos mortos.

E o que mais?

A última forma de manifestação desse anseio é o presente absoluto, as eternidades de segundos. Se um punhado de átomos abriga energia suficiente para destruir uma cidade, por que um punhado de segundos não poderia abrigar toda a eternidade? Falo do êxtase, na experiência mística, na relação amorosa, na natureza, nos estados alterados de consciência proporcionados por substâncias psicoativas, experiências de quase morte. São alguns exemplos de momentos de plenitude e harmonia cósmica que nos dão a sensação de contato com uma forma de eternidade porque nos deixam impressão viva de contato com uma realidade transcendente que não é a nossa, do mundo dos sentidos e da matéria.

E de que maneira se manifesta o seu anseio por perenidade?

Houve clara mudança na tônica dominante. Quando eu era jovem, vivia sob a fantasia do presente absoluto, de viver momentos extáticos, de força, contundência e luminosidade que redimissem minha vida. Buscava momentos de eternidade em experiências no amor, na arte, nos psicoativos. À medida que amadureci, a tônica foi se transferindo para as expectativas terrenas, no sentido de deixar algum legado pelo qual pudesse ser reconhecido depois da minha existência finita. Hoje, perto de completar 70 anos, constato com certo embaraço que estou bem mais preocupado em prolongar a vida e com esperanças supraterrenas. Já não tenho tanta certeza como tive mais jovem de que morte é o nada absoluto, o abismo do não ser, de que tudo termina nessa inexplicável e misteriosa existência terrena que nos foi proporcionada.

Sobre a imortalidade, tanto do ponto de vista biomédico quanto do tecnológico, como temos avançado?

São dois caminhos em andamento. O primeiro deles é o biomédico, em especial, o da medicina regenerativa, por meio da regeneração genética. Um biólogo molecular e médico japonês, Shinya Yamanaka, fez uma descoberta espantosa, pela qual ele acabou levando um prêmio Nobel em 2012. Ele sintetizou quatro proteínas produzidas por células-tronco (que ficaram conhecidas como fatores de Yamanaka), misturou essas proteínas com células adultas, retiradas do órgão de um mamífero, e verificou que, ao serem misturadas, as células adultas regrediam à condição de célula-tronco pluripotente (que tem capacidade de se transformar em qualquer outra célula do corpo). Ou seja, o relógio biológico regride. Você pega uma célula adulta e faz com que ela volte a ser embrionária.

Mas ele desenvolveu essa técnica no início dos anos 2000 para a obtenção de células-tronco (na época havia polêmica forte sobre a destruição de embriões para a obtenção de células-tronco embrionárias), não como uma terapia regenerativa. Sabe-se que é altamente teratogênica (traz risco de causar malformações genéticas)…

O que houve de mais avançado nesse campo de regeneração celular, até onde sei, foi uma experiência feita com a retina de um ratinho idoso, praticamente cego. Ela voltou a ser jovem e foi reimplantada no ratinho, que voltou a enxergar. Isso já é exequível. Há problemas com órgãos mais complexos, muitos teratomas surgem, de fato. É um processo não muito domesticável. Mas estão tentando novas combinações mais adequadas para a reconstituição de órgãos mais complexos sem o risco do desenvolvimento de tumores. Isso delineia o caminho da imortalidade no sentido biomédico. Não é que a pessoa vá ser imortal, ela será imortal no sentido biomédico. Ou seja, desde que ela não seja atingida por uma morte violenta, externa, ela teria condições de renovar sua existência corporal e cerebral indefinidamente. Não é mais uma questão de se, mas de quando: a opção da imortalidade biomédica já está no horizonte.

E o caminho digital?

O outro caminho é o de “imortalidigitalização” que, no fundo, é uma versão da imortalidade da alma em registro cibertnético, digital. A pessoa faria um “mind uploading”, transformaria em código toda a rede neural de um cérebro adulto, e a transferiria para um suporte digital. Ou seja, haveria uma réplica do mundo mental de uma pessoa em sua integralidade acoplada a uma máquina ou mesmo a um clone. Mas vejo um limite intransponível na imortalidigitalização: a interioridade do ser humano.

O senhor poderia explicar melhor?

Uma máquina pode mimetizar exatamente a personalidade de alguém que já existiu, responder do mesmo jeito, com a mesma voz e entonação, com as mesmas características sutis de uma personalidade humana individual, a ponto de enganar o interlocutor que acha que está interagindo com alguém que já se foi. Mas o que isso não contempla é que a experiência humana não é só exterioridade, existe uma dimensão que é a sensação de ser quem se é, uma experiência interna, subjetiva, intransferível. O meio digital é completamente incapaz de recriar.

Qual seria um exemplo?

Imagina um refinamento das técnicas de observação do cérebro em tempo real levada a um nível superlativo, muito acima do que conhecemos hoje, uma capacidade de ler tudo o que se passa em cada neurônio e em cada conexão do cérebro de uma pessoa em tempo real. Suponha que essa pessoa esteja ouvindo música, uma sonata de Beethoven. Teríamos registro neurofisiológico hiperpreciso e acurado de tudo o que acontece na mente da pessoa concentrada, ouvindo a sonata. Seríamos capazes de prever os efeitos que certos acordes produzirão no cérebro da pessoa com alguma antecedência, seríamos capazes até de prever configurações neuronais de alguém ouvindo a sonata. Tudo isso é concebível e perfeitamente imaginável. Quem tem esse registro hiper-realista do cérebro da pessoa consegue saber alguma coisa sobre a vivência interna de quem ouve a sonata? O mergulho introspectivo, onírico, subjetivo, eventualmente sublime? A digitalização é maravilhosa quando se trata da terceira pessoa, mas quando se tenta dar o passo para o ponto de vista interno do sujeito, esbarra num paredão intransponível. Portanto, ela não entrega a imortalidade. Sem internalidade, ela não será ninguém, será um arquivo. A sensação de ser quem se é é tão pessoal que não dá para imaginar que possa ser transferível para uma máquina, por mais avançada e sofisticada que seja.

E vale a pena viver para sempre? Quais as implicações éticas?

A questão interessante e filosófica na qual me aprofundo é justamente essa: vale a pena viver para sempre? Será que nos damos conta das imensas implicações de vivermos não mais 100 anos, mas dez mil anos, 300 mil anos, o tempo que for? Há um debate rico entre os mortabilistas e os imortabilistas. Os mortabilistas defendem o ciclo de vida natural argumentando que o que suscita valor à vida é justamente a sua finitude, a beleza da vida, todo o seu encantamento, é ligado à nossa condição finita. Já os imortabilistas querem abolir a morte. Para eles, enquanto me for dado mais um dia, aceitarei viver, desde que em condições razoáveis de saúde física e mental. Estamos apenas começando a entender as imensas consequências disso.

O senhor poderia dar um exemplo?

Suponha que a nossa geração se torne imortal biomedicamente. Ela seria a última geração humana porque o planeta não comporta demograficamente uma população que não morre e continua gerando descendentes. Os direitos reprodutivos teriam de ser radicalmente restritos.

E a questão da desigualdade? Um planeta em que parte das pessoas seja imortal biomedicamente e outra parte, seria um planeta ainda mais desigual do que o atual?

Sim, esse é um problema sério. Suponha que essa técnica seja muito cara, restrita apenas a ricos e poderosos. Isso vai dividir a humanidade não mais em classes sociais, seriam quase duas espécies. Casta imortal e mortal. Isso vai criar tamanho ressentimento, ódio e rancor nos que não têm acesso a essa tecnologia que vai deixar a vida dos imortais infernal. E como a violência continuará matando, cria-se uma situação absolutamente insustentável.

O senhor considera que a morte seja uma doença a ser combatida?

Houve uma discussão interessante recente entre médicos nos Estados Unidos sobre se deveriam classificar a morte como uma doença no novo compêndio das patologias. Ela chegou a ser incluída, mas houve uma grande discussão e ela foi retirada da categoria das patologias. Particularmente, acho que a morte é parte do ciclo natural da vida, tão natural quanto nascer, crescer e envelhecer. Também não acho que o envelhecimento seja doença, embora ela debilite enormemente o organismo e tentemos combater. A morte surge no mundo natural com a reprodução sexuada. No momento em que dois seres precisam se unir para gerar um terceiro, os corpos deles perdem a razão de ser do ponto de vista biológico depois da reprodução, são cápsulas descartáveis. Já os seres unicelulares não têm a morte inscrita em seu genoma, como nós. Eles se dividem em dois, em quatro e vão infinitamente assim, se o ambiente não criar restrições. A morte é algo que vem de fora para dentro. No nosso caso, seres de reprodução sexuada, a morte é também de dentro para fora, ela está inscrita em nosso DNA, bem como a senescência. Não só somos sujeitos aos caprichos do acaso, aos acidentes, mas também carregamos a programação para a senescência e o colapso. E isso nasce justamente no momento em que a reprodução sexuada se afirma como método natural de procriação. Em resumo, com o sexo nasce a morte.

O senhor considera contraditório que o homem busque a imortalidade e, ao mesmo tempo, esteja destruindo o planeta de forma irreversível?

Não vejo contradição. Essa busca da imortalidade se dá essencialmente no plano individual. É cada indivíduo se esforçando, como tudo o que vive, para se manter vivo. O que estamos descobrindo é que formas de vida muito agressivas em relação ao mundo natural, quando bilhões de pessoas geram interações que produzem eventos ameaçadores da vida. O curioso das mudanças climáticas é que não é intenção de ninguém. Nenhum ser humano, estado ou empresa tem intenção de provocar as mudanças climáticas. Mas elas são resultado da ação humana. Não da intenção, mas da ação. São bilhões de seres humanos agindo na produção e no consumo de forma que o resultado final é o contrário do pretendido e nos afronta quase como uma fatalidade, um terremoto ou cataclismo natural.

Link da publicação: https://www.estadao.com.br/ciencia/qual-o-sentido-da-vida-quantos-anos-mais-teremos-imortalidade-biomedica-esta-no-horizonte/

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