Entrevistas

Estado foi desenhado para manter as hierarquias, diz professor do Insper

  • Brasil avançou em políticas sociais, mas a desigualdade pouco diminuiu
  • Primeira infância é fundamental para enfrentar as desigualdades no longo prazo

Folha

Apesar dos avanços sociais desde a Constituição de 1988, o Brasil continua preso a uma estrutura que naturaliza privilégios e limita a mobilidade social. Para o economista Naercio Menezes Filho, professor do Insper, o Estado brasileiro foi historicamente desenhado para manter hierarquias, e só políticas públicas incisivas, especialmente na primeira infância, poderão romper a lógica da reprodução das desigualdades.

A mobilidade intergeracional no Brasil é muito mais lenta do que em outros países. Isso é reflexo de políticas públicas falhas? Qual é o papel de nossa estrutura social que naturaliza privilégios?
Houve grande melhora das condições de vida das famílias mais vulneráveis nos últimos 40 anos, desde a Constituição de 1988. Neste período, houve a criação do SUS [Sistema Único de Saúde], a Estratégia Saúde da Família, a universalização do ensino fundamental, o programa Bolsa Família e muitas outras. Antes disto, havia pouco contato do Estado com a população pobre. Mas essas políticas não foram suficientes para aumentar a mobilidade intergeneracional, porque a diferença entre as condições socioeconômicas das crianças que nascem em famílias mais ricas e as mais pobres é muito grande.

A expansão do ensino superior foi suficiente para democratizar o acesso à elite do conhecimento ou só criamos novas hierarquias dentro do próprio sistema?
A expansão do ensino superior, juntamente com as mudanças no sistema de ingresso [Sisu] e as cotas nas universidades públicas, ampliaram o acesso dos mais pobres. Isto foi importante para democratizar a frequência, trazendo mais diversidade para o sistema superior público e para as profissões mais nobres e servir de referência para os alunos de ensino médio nas escolas públicas. Mas, isso não foi suficiente para diminuir a desigualdade na sociedade porque ainda há muita discriminação na sociedade e no mercado de trabalho. Além disso, os filhos das famílias mais ricas acabam buscando níveis educacionais mais elevados.

Qual o papel da educação infantil de qualidade no enfrentamento das desigualdades de longo prazo?
A educação infantil e, de forma mais ampla, a primeira infância, que é o período de zero a seis anos de idade, é fundamental para enfrentar as desigualdades no longo prazo, pois é neste período que as habilidades cognitivas e socioecomocionais se desenvolvem de forma mais rápida. Essas habilidades são fundamentais para acelerar o aprendizado, e aumentar a inserção produtiva no mercado de trabalho das crianças nascidas em famílias pobres.

A informalidade é uma estratégia de sobrevivência ou um sintoma da falência do pacto social?
A informalidade e o trabalho por conta própria são estratégias de sobrevivência. Muitas pessoas não conseguem se desenvolver plenamente na primeira infância, aprendem muito pouco na escola e depois não conseguem um emprego com carteira assinada. Para essas pessoas resta a alternativa de trabalhar de forma pouco produtiva na informalidade. As empresas informais só conseguem sobreviver porque não pagam os altos custos para ingressarem no setor formal da economia.

Como o Brasil pode promover inclusão produtiva real sem se apoiar apenas em programas de transferência de renda?
É necessário que as crianças nascidas nas famílias mais pobres tenham apoio dos pais, dos cuidadores e das políticas públicas desde o nascimento para poderem se desenvolver integralmente. Além disso, é necessário melhorar o aprendizado na educação básica, para que essas crianças possam ser proficientes em matemática, leitura e ciências, ingressar no ensino superior e depois no mundo do trabalho com bons salários,

O novo mundo do trabalho (com plataformas, automação e inteligência artificial) tende a aprofundar ou reduzir as desigualdades?
Ainda não sabemos como as novas tecnologias irão impactar o mercado de trabalho e a desigualdade. Se essas tecnologias substituírem o trabalho mais qualificado, como o dos médicos, advogados, engenheiros, elas poderão diminuir a desigualdade. Mas, se destruírem os empregos de nível médio mais intensivamente, poderá ocorrer o contrário. Ainda é cedo para sabermos o que vai acontecer.

O Estado brasileiro está desenhado para promover igualdade ou para manter as hierarquias sociais?
Até recentemente o Estado foi desenhado para manter as hierarquias. A história do Brasil sempre foi de exclusão, na medida em que as elites não promoveram a escolarização dos escravos libertados e dos seus filhos, evitando a massificação do ensino público para não perderem poder econômico e político. Basta ver que até recentemente os analfabetos não podiam votar. Esse processo foi atenuado mais recentemente com a nova geração de políticas públicas, mas ainda é muito difícil diminuir a desigualdade de forma mais incisiva.

O sr. acredita que políticas redistributivas, como cotas ou transferências condicionadas, são suficientes ou precisamos mexer em estruturas mais profundas?
Acho que essas políticas redistributivas têm um papel importante, especialmente se avançarmos também na tributação dos mais ricos. Mas é preciso também caminhar de maneira mais rápida para uma sociedade com igualdade de oportunidades, o que só será conseguido com políticas públicas intersetoriais na primeira infância, abarcando educação infantil de qualidade, assistência social, saneamento básico, saúde pública e programas de visitação domiciliar.

O Brasil tem elites que acreditam no pacto republicano ou que apenas se beneficiam dele?
A elite brasileira não é homogênea. Uma parcela da elite trabalha ativamente para aumentar a inclusão através da programas educacionais, sociais e na primeira infância. Outra parte resiste a qualquer avanço, lutando para evitar que políticas progressivas na tributação passem no Congresso, por exemplo.

Como romper com a lógica da reprodução intergeracional de privilégios sem causar reações conservadoras violentas?
É necessário avançar com políticas públicas intersetoriais incisivas. O Brasil conseguiu avançar muito nos últimos 40 anos em várias áreas sociais. Agora é necessário avançar mais rapidamente no desenho de políticas públicas na infância e mudar o sistema educacional para que os jovens possam aprender o que precisam nas escolas públicas. Isso não está acontecendo atualmente.

O senhor é otimista ou pessimista quanto à possibilidade de uma sociedade mais justa no Brasil nos próximos 20 anos? Por quê?
Tenho estado mais pessimista do que otimista. Temos tido muitas dificuldades para melhorar a qualidade da educação no sistema público e para acelerar o crescimento da produtividade. Sem isso, não conseguiremos melhorar a qualidade de vida das novas gerações. Perceber como está sendo difícil alcançar esses objetivos nas últimas décadas me deixa pessimista. Ao mesmo tempo, conseguimos avançar em várias áreas sociais, o que me dá esperança de que em algum momento nas próximas décadas vamos conseguir romper as barreiras do atraso. Além disso, as novas gerações estão mais comprometidas com as mudanças, inclusive na elite.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço Políticas e Justiça da Folha de S.Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Naercio foi “Aint´t Got No,I Got Life”, de Nina Simone.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/politicas-e-justica/2025/09/estado-foi-desenhado-para-manter-as-hierarquias-diz-professor-do-insper.shtml

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