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No fio da navalha

Quando o cenário básico indica crescimento pouco acima de zero na segunda metade do ano, não é preciso muito para colocar o PIB em território negativo

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Depois de um crescimento exuberante no primeiro trimestre do ano (que atingiu 5,3% em termos anualizados), o ritmo de expansão do PIB brasileiro desacelerou para 1,5%, no mesmo critério, no segundo trimestre. Considerando o lado da oferta, o principal responsável pela desaceleração foi o setor agropecuário, que havia tido um crescimento extraordinário no trimestre anterior. Já do lado da demanda, cabe destacar a contração do investimento, acompanhada por uma perda de ritmo do consumo.

A perda de dinamismo já era esperada, e as causas são conhecidas. O impulso do agro é mais intenso no primeiro trimestre do ano e tende a inflar o PIB neste período — mesmo na série ajustada sazonalmente. Mais importante, os efeitos da política monetária estão começando a aparecer mais nitidamente. Um dos principais componentes do mecanismo de transmissão da política monetária é o chamado canal do crédito: a elevação da taxa de política monetária encarece o crédito e freia sua expansão. As concessões de crédito, tanto para pessoas físicas quanto jurídicas, ajustadas pela inflação, saíram de um crescimento de 1,8% (abril), para contração de 1,9% (julho) — médias móveis de três meses.

Além dos efeitos defasados e cumulativos da política monetária, mudanças operacionais no crédito consignado para pensionistas do INSS, bem como uma certa demora na efetiva implementação da nova modalidade de empréstimos com consignação de salários para trabalhadores do setor privado, ajudam a explicar essa desaceleração.

Os indicadores de alta frequência compilados pelo IBGE apontam para um ritmo de crescimento ainda mais débil no terceiro trimestre. As principais pesquisas de atividade do IBGE com alta frequência (mensal) são as da indústria, comércio e serviços, cujos resultados servem de insumos para a compilação do PIB trimestral. Com os dados mensais referentes ao terceiro trimestre divulgados até o momento, referentes a julho (um terço do total), a tendência é o PIB apresentar crescimento de apenas 0,2% (ou 0,8% em termos anualizados), ainda que o setor de serviços tenha tido desempenho melhor que os demais.

A constante redução do custo de armazenamento e análise de dados tem favorecido a criação de novos indicadores econômicos. No Itaú Unibanco, por exemplo, foi criada uma família de indicadores diários de atividade, baseada nos dados agregados sobre pagamentos feitos através do banco. Estes incluem um geral, o IDAT-Atividade, usualmente segmentado entre gastos com serviços e bens, e estes entre dispêndio em itens sensíveis à renda, e aqueles que dependem mais do crédito. Além disso, o indicador apresenta diversos desdobramentos setoriais — IDAT-Malls, IDAT-Pets, IDAT-Academias, e mais uma dúzia de outros índices que permitem monitorar a atividade econômica com alto grau de granularidade.

O indicador agregado vem declinando sequencialmente desde junho (na comparação anual), e o declínio parece ter se intensificado em setembro, considerando dados até o dia 7. A desaceleração tem sido liderada pelos gastos em bens sensíveis a crédito, o que é natural dado o estágio do ciclo de política monetária. Mas o processo está se espalhando, gastos na compra de bens sensíveis à renda e com serviços também vem desacelerando desde o início de junho.

Projeções de crescimento trimestral próximas a zero e atividade enfraquecendo na margem indicam que não se pode descartar um PIB negativo no terceiro ou quarto trimestres do ano. Há, contudo, fatores que, por ora, mitigam o risco da chamada “recessão técnica” — dois trimestres consecutivos de contração do PIB trimestral ajustado sazonalmente.

Em primeiro lugar, no terceiro trimestre teremos a liberação de pouco mais de R$ 60 bilhões em precatórios (equivalente a 0,5% do PIB). Mesmo que apenas parte desse montante seja gasto no consumo de bens e serviços, o impacto positivo tende a ser relevante neste semestre — este certamente foi o caso na virada de 2023 para 2024, quando um volume muito significativo de precatórios foi pago. Há evidências que parte das famílias que receberam precatórios mudaram o padrão de consumo pós recebimento do valor, favorecendo a continuidade da expansão da economia. Há evidências que famílias que recebem precatórios podem apresentar uma propensão marginal a consumir maior do que a média da população, o que favorece a continuidade da expansão da economia.

Outros fatores citados acima, que ajudaram a desacelerar a economia nos últimos meses, podem evoluir mais favoravelmente. No que se refere ao consignado do INSS, é plausível que as dificuldades operacionais sejam ao menos parcialmente superadas, o que sustentaria uma retomada nessa linha de crédito. Já o novo consignado do setor privado pode ganhar maior dinamismo ao longo do tempo, na medida em que emprestadores e tomadores de recursos se acostumem com o produto.

Um importante fator de resiliência da economia é o mercado de trabalho, que ainda dá sinais de estar bastante aquecido. A taxa de desemprego encontra-se abaixo de 6%, cerca de 2 pontos percentuais abaixo do patamar neutro. O emprego se encontra na máxima histórica, salários nominais e reais em elevação, segundo a maioria dos indicadores. Com isso, a massa salarial real mostrou crescimento de 6,9%, nos 12 meses findos em junho, constituindo um seguro contra uma contração da economia. Indicadores alternativos, como pesquisa sobre a dificuldade de conseguir emprego e a taxa de desligamentos voluntários, corroboram o diagnóstico de aquecimento do mercado de trabalho.

Por outro lado, desenvolvimentos que ocasionem uma desaceleração mais intensa do crédito, um choque sobre a confiança dos agentes, bem como rápida elevação da inflação, corroendo salários reais, poderiam aprofundar o declínio, a despeito dos fatores de mitigação. A conclusão é que, quando o cenário básico indica crescimento pouco acima de zero na segunda metade do ano, não é preciso muito para colocar o PIB em território negativo. A economia tem fundamentos de resiliência, mas a atividade parece estar no fio da navalha, entre PIB positivo ou negativo, nesse semestre.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/mario-mesquita/coluna/no-fio-da-navalha.ghtml

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita