A biodiversidade representa a base da segurança alimentar, estabilidade econômica e da própria resiliência climática
Valor
A biodiversidade, apesar de às vezes ser tratada como ‘soeur cadette’ menos prestigiada do clima, representa um dos recursos mais valiosos da humanidade, constituindo a base da segurança alimentar, estabilidade econômica e da própria resiliência climática.
A agricultura depende da diversidade genética e dos serviços ecossistêmicos. A Grande Fome irlandesa dos anos 1840 mostra os riscos da ausência dessa diversidade — mais de um milhão de pessoas morreu quando um patógeno destruiu plantações de batata geneticamente uniformes. A agricultura brasileira depende da umidade amazônica, um serviço ecossistêmico, para sua produtividade.
O desastre irlandês não é único: variedades de arroz de alto rendimento adotadas na revolução verde dos anos 1960 mostraram-se vulneráveis à bactéria Xanthomonas oryzae pv. Oryzae, que em alguns casos destruía metade da produção. Uma grande perda econômica e até cenários de fome foram evitados porque se conseguiu passar material genético de variedades de arroz selvagem resistente à bactéria para as de alto rendimento.
A ajuda da biodiversidade também está presente quando organismos protegem as plantas. No caso da soja brasileira, há técnicas de combinar cepas de bacilos que colonizam as folhas da leguminosa, dificultando que patógenos como a ferrugem asiática nelas se instalem, reduzindo a necessidade de fungicidas químicos, especialmente quando acompanhadas de adequado manejo do solo.
Na soja, a polinização — também um serviço que a biodiversidade proporciona — não é indispensável, mas tende a aumentar a produtividade da lavoura em mais de 10%. O ideal talvez fosse que as abelhas que fazem esse serviço viessem de florestas nativas próximas — o que não é tão frequente nas extensas glebas do Centro-Oeste. Na vida real, apicultores alugam suas operárias, que no processo também recolhem néctar, produzindo mel em boa quantidade. Esse aluguel é comum em várias culturas, inclusive de árvores frutíferas onde a polinização é crucial. Nesses casos, os serviços de polinização — cujo valor econômico a nível global é estimado em US$ 300-500 bilhões anuais — conseguem ser monetizados.
A apicultura, tem ajudado a estabilizar a população mundial de abelhas, mesmo com a perda dos habitats naturais de muitas espécies. No Brasil, a valorização das espécies nativas, as meliponinas, tem ajudado a preservar esse patrimônio nacional, apesar do seu produto ainda não ser oficialmente reconhecido como um mel. Esse movimento seria ampliado com o melhor cumprimento da obrigação de reservas legais, inclusive via compensação em outra propriedade rural localizada no mesmo bioma, uma opção prevista no código florestal que facilita a criação de trechos contínuos de preservação, muito favoráveis à biodiversidade.
O valor econômico da biodiversidade vai além da agricultura. A S&P estimou que 85% das grandes empresas que compõem o S&P Global 1200 têm uma dependência significativa da natureza em suas operações diretas. Perto de metade dessas empresas tem pelo menos um ativo em uma Área-Chave para a Biodiversidade. A PwC, por seu lado, estimou no auge da onda de compromissos climáticos, que perto de 55% do PIB mundial (US$ 60 trilhões) é de alguma forma dependente da natureza. Os mangues, por exemplo, evitariam perdas de US$ 65 bilhões ao ano, reduzindo a erosão da costa, enchentes e outros fenômenos.
A medição do capital natural vem ganhando tração, mas o papel da natureza e dos povos mais ligados a ela para o sucesso de muitas atividades econômicas nem sempre é valorizado.
Compostos naturais contribuem para 60% dos medicamentos aprovados, mas o conhecimento das propriedades medicinais de muitas espécies vegetais detido historicamente por certas populações pode não ser reconhecido ou recompensado. O risco de a contribuição da sócio-biodiversidade ser obscurecida aumenta e deve ser enfrentado quando novas tecnologias vão permitindo construir moléculas e compostos sem aparente conexão com a natureza.
O Prêmio Nobel de Química de 2024, por exemplo, foi repartido entre um pesquisador que desenvolveu métodos computacionais para criar proteínas totalmente artificiais, com funções específicas, e dois cientistas que usaram a inteligência artificial (Alphafold) para prever as complexas estruturas tridimensionais de milhões de proteínas, também com seus efeitos medicinais próprios. Essas são proezas extraordinárias, mas não excluem necessariamente a questão de identificar que conhecimento lastreou o treinamento dos modelos que as permitiram.
Apesar de muitos estudos e o desenvolvimento de extraordinárias plataformas de informação internacionais e brasileiras (e.g., Bpbes.net.br), a biodiversidade e as implicações da sua perda ainda são cercadas de mistérios. As florestas essenciais para a manutenção do equilíbrio climático do mundo devem conter dezenas de milhões de espécies de insetos, das quais menos de 2 milhões estão descritas pela ciência e muitas podem estar desaparecendo. É difícil saber com certeza o impacto dessa extinção, mas a observação empírica e recentes modelos (https://www.nature.com/articles/s41467-025-63600-1) indicam que a diversidade tende a aumentar a resiliência das florestas. Como o desaparecimento das florestas pelo aquecimento global seria catastrófico, evitar a perda da biodiversidade ali pode ser um seguro barato.
Aceito que a biodiversidade é mais do que um luxo ambiental, como preservá-la? Provavelmente aproveitando mais e remunerando bem o que ela pode oferecer para redução de pragas e aumento e diversificação da produção agrícola menos dependente de químicos. Também com iniciativas como a Academia Nobel que será sediada no Rio de Janeiro e centros de ciências aplicadas, como o que o Instituto Serrapilheira propõe incubar, e, sobretudo, com a preservação e restauração da floresta que hospeda essa biodiversidade, inclusive em corredores naturais e em sistemas agroflorestais integrados. A COP em Belém é uma grande oportunidade para mostrar como também aí o Brasil tem avançado, mesmo com desafios importantes ainda a serem resolvidos.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/joaquim-levy/coluna/o-que-a-biodiversidade-proporciona.ghtml
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