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Pagamentos digitais no Brasil e na Índia

Ambas as abordagens resultaram em grande inclusão financeira e novas oportunidades de negócio

Valor

As finanças digitais, especialmente os meios de pagamento digitais, têm se destacado na Índia e Brasil. Lá, elas se baseiam no UPI (Unified Payments Interface), com bastante protagonismo de fintechs domésticas e estrangeiras. No Brasil, o Pix está ancorado no Banco Central e conectado a provedores regulados. É comum se apontar diferenças regulatórias entre os sistemas, sugerindo que a Índia apostou na competição entre interfaces privadas sobre uma infraestrutura comum, enquanto o Brasil criou uma utilidade pública universal acessível através de múltiplos canais regulados. Mas, as distinções sobre a participação do setor privado em cada país são mais nuançadas do que às vezes sugeridas, e ambas as abordagens resultaram em grande inclusão financeira e novas oportunidades de negócio.

Cá e lá, a expansão da digitalização financeira é baseada na tríade da telefonia celular, identificação nacional e contas “bancárias” simplificadas. Na Índia isso é conhecido como a “JAM Trinity” — combinação de Jan Dhan (contas simplificadas), Aadhaar (identificação biométrica nacional) e Mobile (telefonia celular). No Brasil não é muito diferente, afora pela identificação, baseada aqui essencialmente nas chaves Pix (CPF, email, telefone ou chave aleatória), complementadas pela verificação de identidade feita pelas próprias instituições financeiras.

A identificação biométrica indiana dá mais flexibilidade nas transações, com a verificação por impressão digital e facial em vez de PINs, o que começou a valer na Índia agora em outubro. Com isso será possível, por exemplo, executar transações de baixo valor através de comandos de voz, aumentando a acessibilidade para populações com baixa alfabetização ou familiaridade tecnológica, além de potencialmente reduzir as fraudes.

A identificação biométrica no Brasil avança, também a partir das bases de dados para o pagamento de benefícios sociais, mas está longe de ser universal. A Caixa Econômica Federal já teria registros biométricos (e.g., impressões digitais) de 90% dos beneficiários do Bolsa Família, e recente convênio com o governo deve ampliar essa cobertura para os beneficiários do INSS e outros programas, incluindo dados de reconhecimento facial.

A ampliação da identificação biométrica, mantendo-se o CPF como chave básica, também envolve a unificação das bases subnacionais, como as de emissão de carteira de motorista, que incluiriam 150 milhões de pessoas, e mesmo as dos Tribunais Eleitorais, que vêm emitindo títulos de eleitor com esse tipo de informação. Não há prazo, no entanto, para a obrigatoriedade de obtenção de uma carteira de identidade nacional (CIN) com informação biométrica ampla.

O UPI se distingue do Pix também pela privacidade um pouco maior que proporciona. As transações no UPI não são anônimas, mas o número da conta bancária não aparece para quem recebe o pagamento, apenas o número de identificação da pessoa.

As fundações do UPI e do Pix têm um importante componente do poder público. O UPI foi desenvolvido pela National Payments Corporation of India (NPCI), uma organização de propriedade dos bancos, mas com mandato público. O Pix foi desenvolvido e é regido pelo Banco Central do Brasil. Ou seja, o setor público proporciona para ambos os trilhos aos quais são conectados os provedores de serviço privados.

É verdade que a adesão dos bancos ao UPI é voluntária e que quase metade das transações no UPI são feitas através de aplicativos oferecidos pela PhonePe detida pela Walmart e bem mais de 1/3 delas através do Google Pay, deixando aos bancos indianos em grande parte com apenas a gestão ou custódia das contas das pessoas. Já no Brasil, a adesão ao Pix é obrigatória não só para bancos e instituições financeiras, mas também para qualquer provedor de serviços de pagamento com mais de meio milhão de clientes ativos, o que garante interoperabilidade universal e evita fragmentação. Ambos sistemas dão espaço à competição e inovação.

Se na Índia algumas plataformas “não financeiras” dominam a interface com o usuário e a experiência de pagamento, a participação de provedores de serviços de pagamentos no Brasil, alguns com forte participação de capital estrangeiro, também é grande. Além disso, as plataformas de e-commerce de origem nacional ou estrangeira podem utilizar o Pix com grande facilidade, ajudando a integrar também os pequenos negócios ao sistema.

É comum apontar-se para uma maior descentralização decisória na Índia, em contraste com o Brasil, onde o BCB mantém controle direto sobre as regras, segurança e evolução do sistema. Isso teria permitido às fintechs na Índia inovarem com funcionalidades como crédito instantâneo, investimentos integrados e serviços comerciais, transformando aplicativos de pagamento em superaplicativos financeiros. Mas essa distinção não parece tão grande quando se verifica a concorrência em serviços complementares (crédito, investimentos, seguros) que existe no Brasil, potencialmente ampliada ainda pela eventual popularidade da Open Finance.

Independentemente de suas diferenças, os dois sistemas trouxeram resultados notáveis. Na Índia, o UPI processa de 15 a 20 bilhões de transações ao mês, com quase 40% da população mais simples, inclusive na área rural, preferindo o pagamento digital ao dinheiro físico, além de quase toda ela usar as contas associadas ao sistema para sua poupança financeira. Aqui, o Pix já é usado por quase 80% da população, movendo R$ 2-3 trilhões por mês. A eficiência de ambos sistemas usando contas bancárias torna menos urgentes soluções tokenizadas como stablecoins.

A digitalização e a liberalização financeira na Índia têm também levado a mudanças de comportamento importantes, com aumento do endividamento das famílias e impacto na sua proverbialmente alta taxa de poupança. O endividamento teria subido de 36% da renda das famílias para 43%, desde 2021, baixando a taxa de poupança financeira líquida das famílias para cerca de 5% do PIB, gerando certa preocupação do banco central indiano. Mas esse é um tema para outra ocasião.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/joaquim-levy/coluna/pagamentos-digitais-no-brasil-e-na-india.ghtml

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Sobre o autor

Joaquim Levy