Capacidade estatal se cria a partir dos indivíduos que operam a máquina e depende do sistema que os organiza
Globo
Ao desembarcar em Brasília na última terça-feira me deparei com uma cena conhecida dos que frequentam aquele aeroporto: uma dezena de pessoas protestava contra um projeto apresentado no Congresso Nacional. Nesse caso a bola da vez — e não pela primeira vez — era a Reforma Administrativa.
Não por coincidência, no voo que me levou à capital federal, eu lia um livro que acaba de ser publicado pela LSE Press: “The London Consensus: Economic Principles for the 21st Century”, editado por Tim Besley, Irene Bucelli e Andrés Velasco. The London Consensus reúne propostas em torno de cinco princípios convergentes e se apresenta como uma alternativa moderna ao paradigma de políticas econômicas do Consenso de Washington, formulado em 1989 por John Williamson e que se tornou a base das políticas de ajuste de diversos países, em particular na América Latina dos anos 90.
Baseado na defesa de disciplina fiscal e estabilidade monetária, abertura comercial e financeira, privatizações, desregulação e proteção à propriedade privada, o Consenso de Washington foi dragado pelo debate ideológico e se transformou no argumento central da insensibilidade neoliberal às questões sociais.
Como destaca Pedro Malan em “Controvérsias, Dissensos e Convergências” (Uma Certa Ideia de Brasil, Intrínseca 2018), não fora a combinação de Washington com Consenso, talvez esse conjunto de ideias não tivesse ganho o peso que ganhou e menos ainda se prestado à ira ideológica de seus opositores.
Mas, para além da questão semântica, os autores do Consenso de Londres reconhecem o papel relevante que o de Washington teve ao estabelecer uma linguagem comum de políticas econômicas. Além disso, ao promover abertura comercial e estabilidade monetária, seus princípios ampliaram as condições de crescimento e contribuíram para a redução da pobreza em diversos países.
Por outro lado, destacam que seu conjunto de políticas deixou lacunas e se mostra atualmente incapaz de lidar com os desafios que surgiram — ou se aprofundaram — em particular os sociais. Londres busca, portanto, contextualizar, expandir e atualizar esse conjunto de ideias, incorporando temas sociais, institucionais e ambientais ausentes no conjunto original.
É justo aí que Londres encontra Brasília. Nas novas convergências, o quinto princípio chama a atenção para um tema ausente em Washington: a capacidade estatal, ou a habilidade que o Estado tem para atingir seus objetivos na provisão de serviços públicos, na aplicação das leis e na regulação da atividade econômica.
Londres desembarca em Brasília defendendo que um Estado capaz é o “complemento essencial para tudo”. Afinal, da sua qualidade depende o desenho das políticas públicas e a sua implementação. Também depende, portanto, o resultado dessas políticas e a ação de ajuste quando elas não estão funcionando.
Para tanto, há que se desenvolver estruturas organizacionais — até porque elas não surgem por geração espontânea — que possibilitem que o setor público funcione bem e crie as condições institucionais para que o privado também o faça. Isso se dá por meio de processos de seleção, remuneração e incentivos que motivem a burocracia na direção de um serviço melhor.
Capacidade estatal se cria a partir dos indivíduos que operam a máquina e, portanto, depende do sistema que os organiza em torno de suas funções. Ou seja, nada diferente dos objetivos da Reforma Administrativa.
Se o Consenso de Washington não se lembrou da importância do Estado, o de Londres chega convergindo com tantos que, como Armínio Fraga, Carlos Ari Sundfeld e eu, há décadas defendem uma Reforma Administrativa para que o Estado deixe de reforçar nossa desigualdade social e ampliar nossas ineficiências e passe a ser capaz. Capaz de promover oportunidades e gerar condições de desenvolvimento econômico e social.
O protesto brasiliense tinha como alvo a Reforma Administrativa proposta pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), que busca reorganizar o serviço público e eliminar privilégios injustificáveis num país tão desigual. Sua proposta escancara um amplo conjunto de distorções, injustiças e ineficiências, forjadas ao longo de décadas de captura do Estado por corporações. Dada a ambição da proposta, o protesto me pareceu tímido.
Quiçá porque a maioria dos servidores já tenha entendido que o atual modelo, para além de produzir um Estado incapaz, também lhes prejudica.
Link da publicação: https://oglobo.globo.com/economia/ana-carla-abrao/coluna/2025/11/capacidade-do-estado.ghtml
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