Entrevistas

Dificuldade é arrumar alguém que esteja disposto a bancar o ajuste fiscal, diz Schwartsman

Na avaliação do ex-diretor do Banco Central, mesmo num cenário positivo, o Brasil vai ter ajuste duro pela frente, de R$ 250 bilhões, pelo menos

Estadão

Ex-diretor do Banco CentralAlexandre Schwartsman diz que o Brasil tem um acerto das contas públicas não trivial pela frente. Mesmo num cenário com hipóteses positivas, ele diz que o País terá de fazer um ajuste de cerca de R$ 250 bilhões para estabilizar a dívida brasileira.

“Vamos fechar este ano e o ano que vem com um déficit de 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto). Vou ser bonzinho, porque o estrutural é pior do que isso. Você precisa sair de menos 0,5% do PIB para mais 1,5% do PIB sob hipóteses extraordinariamente favoráveis”, diz. “É fazer um ajuste fiscal, nesse cenário muito positivo, de dois pontos percentuais do PIB. Estamos falando de um ajuste de R$ 250 bilhões.”

Na avaliação de Schwartsman, a agenda do ajuste fiscal já é conhecida. O que falta ao Brasil, afirma, é alguém disposto a levar adiante as medidas necessárias, dado o tamanho da agenda necessária para acertar as contas públicas.

“O problema fiscal brasileiro não rende nenhuma tese de doutorado. Não tem nada de inovador em como resolver isso. As respostas estão aí, está tudo mapeado. A dificuldade não é pensar. A dificuldade é exatamente como é que você arruma alguém que esteja disposto a bancar isso daí”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por Schwartsman para a série Ajuste Fiscal: A encruzilhada do próximo governo.

Qual será a situação das contas públicas em 2027?

O resultado do ano que vem deve ficar mais ou menos parecido com o deste ano. A última revisão bimestral colocava o resultado de 2025 na casa de R$ 75 bilhões. Provavelmente vai ser menos, porque tem um pouco de empossamento. Estamos olhando um resultado na casa de uns R$ 60 bilhões, R$ 70 bilhões de negativo. E, para o ano que vem, alguma coisa também nessa casa, de R$ 70 bilhões mais ou menos (negativos). Mas com uma piora, no sentido de que o espaço para despesa discricionária vai ficando cada vez menor.

E, quando chegar em 2027, quais serão as medidas necessárias?

A gente sabe que precisa mexer na Previdência. Mexer na Previdência significa, provavelmente, elevar a idade. Isso se aplica ao BPC (Benefício de Prestação Continuada) também, que tem crescido num ritmo muito forte. A gente vai ter de subir o sarrafo para fazer direito tanto a parte de aposentadorias e pensões do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) como do Benefício de Prestação Continuada. Vai ter de desvincular esses benefícios do mínimo ou voltar à política de reajustar o mínimo só de acordo com a inflação, sem ganhos reais. Provavelmente vai ter de mexer também na aposentadoria de militar. Tem de mexer na vinculação orçamentária, em todo aquele mínimo que tem de ser gasto.

reforma administrativa também tem de fazer. Não vai ter um impacto fiscal grande, mas a gente precisa fazer do mesmo jeito. E outra coisa: tem o projeto de repensar os programas sociais e tentar dar uma certa racionalidade nessa história. Provavelmente, não implica redução de gasto, mas acho que implica um crescimento mais lento do gasto mais para frente e uma focalização melhor do programa. E os detalhes estão lá na Lei de Responsabilidade Fiscal. Tentar construir uma rede de proteção social melhor integrada e que evite desperdício. É uma agenda conhecida. O problema não é saber o que tem de ser feito; o problema é como vai fazer para levar esse negócio adiante.

Como levar adiante?

Eu vejo duas condições essenciais. Uma, você precisa acreditar no negócio. Sem acreditar, fica difícil. E a outra, você precisa de condições concretas de apoio político para fazer isso. Obviamente, não sou ingênuo a ponto de dizer que uma pessoa vai se eleger dizendo que vai reajustar o mínimo só de acordo com a inflação. Mas, pelo menos, precisa de uma indicação de que tem uma preocupação com o rumo das contas públicas e que pretende, de alguma forma, reformar a questão do gasto, em particular, a do obrigatório. Eu acho que uma pessoa que fizer uma campanha baseada em rejeitar essas ideias explicitamente vai ter muita dificuldade lá na frente de fazer, caso mude de ideia.

É uma linha tênue, não? Por que, se o próximo governo não compra essa ideia, o ajuste não vai se impor?

No caso de reeleição do atual governo, dou como favas contadas que não vai rolar. Não vai rolar por falta de convicção, e não vai rolar porque mesmo que, se por um milagre caírem as escamas dos olhos e houver uma revelação, não vai ter como fazer. É um pouco que nem o governo Dilma. A Dilma (Rousseff) fez o que fez. Em 2014, fez literalmente o diabo para se reeleger e, em 2015, tentou virar o rumo, e não dava. Eu acho que a intensidade da recessão que a gente viveu naquele momento é, em larga medida, porque havia essa percepção de que o rumo, de maneira geral, da política econômica era insustentável, em particular na parte fiscal, e, ao mesmo tempo, o governo não tinha condições políticas de mudar isso. A interpretação do PT tem alguns paralelos. Eles atribuem o problema à tentativa de ajuste. Eu acho que eles não entenderam exatamente a natureza da coisa, mas, independentemente do que entenderam, o fato é que aponta para uma situação em que o apetite por fazer é zero.

Mas a conta não fica cara, se não fizer nada?

Fica.

E tudo bem?

Vai empurrando até quando der. Vamos lá, o Lula é eleito. Você acha que ele vai, sendo eleito, propor uma reforma previdenciária? Ele vai mudar a regra do salário mínimo? Vai mexer no Bolsa Família? Eu acho impossível. Se ele fizer um negócio desses, ele tem, primeiro, um Congresso extraordinariamente hostil. Segundo, ele vai ter uma dificuldade imensa de explicar para o eleitor dele. A Dilma passou por isso. Obviamente, o Lula é um político mais vivido do que a Dilma — enfim, o sarrafo está lá embaixo também; qualquer um é melhor. Mas vai ter uma dificuldade enorme de fazer. Eu acho que ele não faz. E um cara, que é eleito com uma plataforma não precisa ser superexplícito a esse respeito, mas com um compromisso de verdade com a questão fiscal também vai ter dificuldade. Não é uma questão trivial fazer isso no Brasil.

São vários nomes da oposição, mas eles teriam mais condições de fazer esse ajuste?

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Falar que o nome não importa não é exatamente verdade. Mas importa menos do que normalmente se imagina. Desde que não seja maluco, tipo Eduardo Bolsonaro ou coisas do gênero, os outros têm condições de fazer alguma indicação nesse sentido. O (Romeu) Zema, o Ratinho (Júnior), o Ronaldo Caiado, o Eduardo Leite e o próprio Tarcísio (de Freitas). Eles podem fazer esse discurso, até porque estão na oposição. Agora, a ver como cada um deles consegue lidar com isso. Se eu tivesse de olhar, olharia quem, no passado, deu mostras de ter navegado nisso bem, como o Caiado, o Eduardo Leite e o Zema. Esses três pegaram situações delicadas e levaram adiante. Têm coisa para mostrar. Mas o nome me interessa menos, o que me interessa é o que tiver de carne num programa desse. O que você está propondo? E, se dentro desses nomes, vai ter gente com capacidade de aglutinação para levar isso adiante, porque também não vamos nos enganar: você precisa do Congresso.

E como o sr. vê o papel do Congresso?

Não é que o Congresso seja formado por campeões de austeridade fiscal. Mas, se corretamente provocado, o Congresso já mostrou que consegue fazer coisas que, se não são perfeitas, são melhores do que as que tinha. Em 2019, aprovou uma reforma previdenciária considerável. Não, não foi perfeita, mas teve avanços enormes. E não é necessariamente um Congresso muito diferente do que a gente imagina que vá ser eleito no ano que vem. Vai ter fisiologismo? Vai. Vai ter emenda? Vai. Tudo isso vai ter. Mas é isso. Não se mostraram assim inarredáveis, mesmo no que diz respeito à oposição ao ajuste fiscal. Se devidamente provocados, acho que eles reagem bem.

E o Judiciário?

No caso do Brasil, ninguém sabe. Depende do dia, depende da lua.

E as medidas têm de ser apresentadas logo de cara ou o País tem tempo?

Nada disso vai ter um efeito grande no curto prazo. A composição da despesa no Brasil é conhecida. Quer dizer, noventa e tantos por cento da despesa é predeterminada. E você não vai mexer no nível da despesa, inclusive porque não pode. Não pode baixar o salário mínimo, não pode baixar o salário do funcionalismo. O que você vai ter de fazer é aprovar coisas que sugerem que o ritmo de crescimento do gasto obrigatório — que hoje supera consideravelmente, por exemplo, o limite máximo de crescimento permitido pelo arcabouço fiscal às despesas — vai se reduzir. Se ele ficar num horizonte razoável, a gente vai ter uma situação melhor do que a que a gente tem hoje. Isso é o máximo que você consegue fazer no Brasil. Num certo sentido, é um pouco o que foi o teto no governo Temer. Não acho que tem espaço para um teto ou alguma coisa assim, porque esse instrumento foi desmoralizado. Eu, inclusive, falei que o teto teria dificuldades para ser levado adiante, porque ele só funcionaria se você mexesse nas despesas obrigatórias. Mas, naquele momento, foi uma sinalização de que havia um compromisso para tentar levar adiante um ajuste fiscal nessas linhas de que eu estou falando, de moderar o ritmo de crescimento da despesa obrigatória.

Isso ajudou na época…

E a reação do mercado foi extraordinariamente positiva. Vimos o juro longo despencar no Brasil. O spread entre o juro real brasileiro e o juro real norte-americano deu uma bela encolhida. Mas, de qualquer forma, isso é só para dizer o seguinte: se você tem um programa que indique que o ritmo de crescimento de gastos ao longo dos próximos anos vai desacelerar a ponto de, por exemplo, ser inferior ao crescimento do PIB, acho que você tem condições de colher alguns desses ganhos. Tem de aprovar o que der. É uma agenda longa. Não vai conseguir aprovar tudo em um ano. Os resultados vão demorar para aparecer. Mas, se fizer esse tipo de coisa, você consegue colher alguns dos bons resultados muito antes de os ganhos se materializarem, como foi o caso com o teto de gastos. E, nessa circunstância, acho até mais justificado, porque, de fato, você está mexendo na raiz do problema. O teto foi importante, mas era um instrumento de sinalização do que você pretendia fazer à frente, mais do que de medidas que levassem a uma redução do ritmo de crescimento do gasto obrigatório, que é a essência do problema.

Se o País não endereçar essas medidas, o que acontece?

A dívida vai continuar crescendo. Vamos terminar o atual governo com a dívida, pelo critério brasileiro, na casa de uns 81% do PIB, 82% do PIB. Pelo critério do Fundo Monetário Internacional, está acima de 90% do PIB. Vamos pegar o mais baixo, vamos dizer que seja 80% do PIB ou ao redor disso, e vamos trabalhar com um juro real menor do que temos hoje. Hoje, o juro real que a gente vê no Brasil de longo prazo é de 7% ao ano. Vamos trabalhar com 5%. Bom, 5% de juro sobre uma dívida de 80%, você adiciona quatro pontos percentuais de juro à dívida todo ano.

É muita coisa…

Mas você cresce também. Vamos ser otimistas. Eu não acho que o Brasil consiga crescer 3% de forma sustentável. Mas vamos dar de barato que sim. Bom, se eu consigo crescer 3% ao ano, sobre uma dívida de 80%, eu estou comendo 2,4% do PIB ao ano de dívida pelo fator de crescimento. Então, o juro acrescenta 4, e o crescimento tira 2,4. A resultante disso é uma dívida que cresce um pouquinho mais de 1,5% do PIB todo ano. Precisa fazer um resultado primário de 1,5% do PIB ou mais. Mais, se você quiser derrubar essa dívida. Vamos fechar este ano e o ano que vem com um déficit de 0,5% do PIB. Vou ser bonzinho, porque o estrutural é pior do que isso. Você precisa sair de menos 0,5% do PIB para mais 1,5% do PIB sob hipóteses extraordinariamente favoráveis. É fazer um ajuste fiscal, nesse cenário muito positivo, de dois pontos percentuais do PIB. Estamos falando de um ajuste de R$ 250 bilhões.

Não é trivial?

Não.

O País já precisou de um ajuste desse tamanho ou é uma coisa inédita?

A gente chegou a ter superávit primário de três pontos percentuais, mas com uma carga tributária bem mais baixa do que a de hoje. Não vamos tapar o sol com a peneira: nem o Fernando Henrique nem o Lula seguraram os gastos. O ajuste fiscal de ambos foi carregado principalmente no aumento de receita. Hoje, a sociedade está muito mais resistente ao aumento da tributação. Por que isso? Eu acho que o nível de onde se parte não é indiferente. Se sai de uma carga tributária de 29% do PIB ou 30% do PIB e sobe para 32% do PIB ou 33% do PIB, é uma coisa. Se você sai de 32% do PIB ou 33% do PIB, o nível de resistência é muito maior. Parte da história é essa. Outra parte é um quadro político muito mais polarizado. Tem uma série de coisas que sugerem que a sociedade não está exatamente feliz com essa história de pagar mais imposto. Toda vez que se tentou passar aumento de imposto no Congresso, não voou. O próprio IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) foi só com o VAR, porque, na bola, o governo não levou.

A gente vê uma resistência grande da sociedade brasileira em pagar mais imposto. E não é descabida, porque o nosso nível de carga tributária, para um país com a renda per capita como a do Brasil, é altíssimo. Somos um outlier. De maneira geral, países emergentes têm carga tributária muito menor do que a nossa. Eu sempre tive muita curiosidade de saber quanto o Estado brasileiro gasta. Tem um trabalho do Tesouro de tentar estimar o resultado fiscal de União, Estados e municípios, que permite, entre outras coisas, saber quanto o governo brasileiro gasta por ano. O gasto dos três níveis de governo, em 2010, era um pouco superior a 40% do PIB, incluindo o juro, não só o primário. Nos 12 meses terminados em junho de 2025, os gastos superam 47% do PIB.

Sete pontos de aumento, então..

É coisa para caramba. É um governo que gasta quase metade do PIB. É um país emergente, mas que acredita ser uma social-democracia europeia. Se você olhar as grandes sociais democracias europeias, como França, Finlândia, Suécia, Noruega, elas têm esse nível de gasto. A Alemanha não tem esse nível de gasto. Os Estados Unidos estão longe disso. O Brasil, como proporção do PIB, gasta tanto quanto uma social-democracia europeia — e não entrega os serviços de uma social-democracia europeia, para colocar coisas numa maneira educada. É muita coisa. O juro é uma parcela grande dessa história. Não tenho dúvida, não. O gasto com juro, talvez, represente um aumento de um ponto e meio nessa história. Mas são os programas sociais lato sensu. Envolve Previdência, o BPC, o Bolsa Família, o seguro-desemprego, o seguro defeso. Tudo o que se colocou lá. É o aumento do gasto primário. Dentro do gasto primário, é o aumento dos programas sociais. É uma escolha que a gente fez. A gente acha que é uma social-democracia, então, vamos montar uma rede de proteção social a lá social-democracia europeia. Só que a gente paga um juro alto, e aí tem um desequilíbrio que é insanável.

E como convencer a sociedade desse debate?

Não tem uma resposta, mas começa sendo honesto. Porque, se você falar que não precisa, assume e faz o ajuste, vai dar um problema. Com todas as dificuldades que o (Javier) Milei enfrentou, o cara prometeu, foi meio (Winston) Churchill — sangue, suor e lágrimas — e se elegeu. E, contra o que todo mundo esperava, teve uma baita vitória parlamentar agora. Eu acho que a sociedade, quando percebe a gravidade do problema, entende a necessidade de seguir em frente. Talvez, a gente não esteja ainda sentindo o que significa não ter uma economia estável. Eu acho que chegamos perto disso quando houve o episódio do segundo governo Dilma. O PIB afundou 8% em dois anos. Dá para argumentar que foi a pior recessão desde que a gente consegue medir isso com algum grau de precisão. E aí, então, o País levou adiante uma série de coisas. Fez o teto de gastos, estava ameaçando passar uma reforma previdenciária. Isso num governo que não tinha nem sequer sido eleito. Era o governo do vice, com dificuldades políticas evidentes. Não é que ele tenha saído aplaudido do Palácio do Planalto. Não foi o caso, mas houve condições de levar adiante. Mas aí já não é um problema para economista, é um problema para o cientista político. A gente sempre brinca que, economista, no Brasil, tem de usar um chapéu de cientista político amador o tempo todo. O problema fiscal brasileiro não rende nenhuma tese de doutorado. Não tem nada de inovador em como resolver isso. As respostas estão aí, está tudo mapeado. A dificuldade não é pensar. A dificuldade é exatamente como é que você arruma alguém que esteja disposto a bancar isso daí.

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