Artigos

A carta de Bill Gates e os ‘cidadãos de bem’

Folha

Há situações em que nossa intuição se antecipa muito à razão —sentimos bem antes de sermos capazes de justificar a emoção.

Foi minha experiência quando, ao ler a recente carta de Bill Gates (“Três Verdades Duras sobre Clima”), imediatamente me veio à mente a música “Les Bourgeois”, de Jacques Brel.

Brel transpirava, em cada canção e em suas interpretações intensas, a integridade de seu caráter e de seus conflitos.

Cantava a exaltação apaixonada da juventude e a melancolia madura diante da hipocrisia humana.

É conhecido entre nós principalmente pela bela “Ne Me Quitte Pas”, mas sua obra é muito mais vasta e fascinante.

Espelha, com igual intensidade e poesia, o desgaste das relações amorosas em “Les Vieux Amants”, (onde ironiza: “Foi preciso talento para envelhecermos sem nos tornarmos adultos”), a crueza e a desesperança da vida dos marinheiros em “Amsterdam”, ou a despedida de um amigo arruinado pela vida em “Jef”.

Na canção que me ocorreu, “Les Burgeois” —que me parece mais adequadamente traduzida como “Os cidadãos de bem”, não simplesmente “Os burgueses”—, o cantor jovem e dois amigos zombam dos notários e juízes que frequentam uma taverna, cantando: “Os homens de bem são como porcos, quanto mais velhos, mais tolos se tornam”. Ao final da música, o cantor e seus amigos, agora notários, queixam-se a um policial dos moleques que lhes repetem a mesma antiga provocação.

Brel retrata o conformismo inevitável do tempo: o idealismo morre, o medo cresce e a conveniência toma o lugar da coragem.

À primeira vista, nada pareceria ligar essa música à carta de Gates.

O filantropo defende que a vida humana —saúde, bem-estar, desenvolvimento— deve ser o centro da estratégia de enfrentamento das mudanças climáticas.

Recomenda que aceitemos o fato de que a temperatura global se elevará de 2ºC a 3ºC neste século e que invistamos na adaptação a essa nova realidade.

Seguindo a mesma lógica, acredita que o aumento do uso de energia não deva ser combatido, pois está correlacionado ao desenvolvimento econômico e à melhoria das condições de vida.

Defende que deixemos à inovação tecnológica a tarefa de reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE). Procede então à análise do que vem sendo feito nos setores de eletricidade, indústria, agricultura, transporte e habitação, para concluir recomendando que se invista para tornar as soluções limpas mais competitivas, especialmente onde o desafio ainda é maior.

O que poderia haver de errado em afirmações de tamanho bom senso e razoabilidade? Não devemos buscar melhores condições de vida para todos e nos adaptar às mudanças inevitáveis?

Após refletir, percebi que a profunda decepção que o texto me causa não vem de suas recomendações, mas de suas omissões.

Gates ignora a evidente situação de conflito que envolve a questão climática —o conflito entre os países produtores de petróleo e o setor de combustíveis fósseis, de um lado, e a ciência que atribui inequivocamente às emissões de GEE o aquecimento global, de outro. Ao defender que se concentrem recursos na busca de soluções para a saúde e pobreza, em nenhum momento ele propõe que, para tanto, se utilizem os US$ 7 trilhões que, segundo o FMI, são gastos anualmente em subsídios globais aos combustíveis fósseis (dado de 2022).

Ignorando esse confronto essencial, ele situa o conflito onde este menos se encontra: na competição entre o esforço para reduzir emissões e o investimento em reduzir desigualdades e melhorar as condições de vida.

Não tenho qualquer dúvida quanto ao papel central que cabe à tecnologia na superação do desafio climático. A brutal redução de custos das energias renováveis, por exemplo, aponta claramente nessa direção. Mas a resistência da industria fóssil custará à humanidade muitos anos —e muitas vidas— se não for combatida através do fortalecimento de uma governança global, capaz de desestimular emissões —por exemplo, através de mercados de carbono.

A omissão do confronto é especialmente grave quando a carta é publicada às vésperas da COP30, principal fórum em que lideranças globais comprometidas com o clima tentam aprimorar os mecanismos que acelerariam a substituição dos combustíveis fósseis.

Sabemos que a estratégia da indústria fóssil é justamente sabotar qualquer esforço regulatório: enviar centenas de lobistas às COPs, apoiar a eleição de líderes comprometidos com o setor, reverter legislações restritivas às emissões. A publicação da carta neste momento serve perfeitamente a esses objetivos.

Choca ainda que, diante de uma COP realizada na floresta, o problema do desmatamento —responsável por cerca de 10% das emissões globais— seja simplesmente ignorado.

Podemos presumir que o desmatamento esteja incluído —imprecisamente, sem dúvida— no item “agricultura” (19% das emissões). Mas mesmo isso é incerto, pois Gates se detém apenas sobre os fertilizantes e a pecuária como causas de emissões agrícolas. Além disso, não faz referência alguma às soluções baseadas na natureza —como preservação e regeneração— como tecnologias disponíveis para a redução de emissões.

A carta de Gates soa, aos meus ouvidos, como um convite à inação —para todos nós que não estamos diretamente ligados ao desenvolvimento tecnológico.

O mesmo convite à inação que se ouvia no discurso pacifista de Chamberlain em 1938, enquanto Churchill se exasperava diante do rearmamento alemão.

(E escolho aqui a comparação mais branda: poderia ter citado o marechal Pétain, que certamente alegaria pensar no bem-estar do povo francês ao firmar a paz de Vichy.)

O conflito não deve ser procurado, mas ignorá-lo serve apenas aos interesses do agressor.

A repercussão da carta foi imediata —e reveladora. O presidente americano a saudou com um post literal:

“Acabamos de ganhar a guerra contra a farsa das mudanças climáticas. Bill Gates finalmente admitiu que estava completamente errado nessa questão. Foi preciso coragem para agir assim, e por isso somos todos gratos. Maga!!!”.

A meu ver —e infelizmente—, coragem é justamente o elemento ausente quando um “cidadão de bem”, admirável por sua inteligência, criatividade, atividade filantrópica e produtividade, decide capitular diante de pressões que, reconhecemos, dirigem-se inclusive a seus interesses empresariais.

Como diria Brel, com a determinação de quem se recusa a envelhecer em paz, “Quanto mais velhos, mais tolos”.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2025/11/a-carta-de-bill-gates-e-os-cidadaos-de-bem.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher