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Segall em duas exposições

Estadão

Duas exposições sobre a obra de Segall foram recém-inauguradas em São Paulo.

A primeira, O paisagismo modernista na produção artística de Lasar Segall, no próprio Museu Segall na Vila Mariana. A segunda, na Bela Vista, no Museu Judaico de São Paulo, com a curadoria de Patricia Wagner. Intitula-se Sempre a Mesma Lua. Trata do amplo significado da condição judaica na sua criação artística, na qual sob “o silêncio amigo” a lua aparece muitas vezes.

As duas exposições ocorrem em convergente complementariedade. Revelam a diversidade criativa dos múltiplos olhares de um grande artista. Alfredo Bosi, ao tratar da fenomenologia do olhar, esclarece: uma coisa é o objeto do olhar, outra é o modo de ver que dá forma e sentido ao objeto do olhar.

Segall dizia que sempre conservou muito abertos os olhos. Por isso, não é por acaso que olhos de proporção maior que o normal são recorrentes no seu traço. Segall viu muita coisa na sua vida, transcorrida na Europa — na Lituânia, onde nasceu, e na Alemanha, onde estudou e participou, influenciou e foi influenciado pelo movimento expressionista — e, subsequentemente no Brasil — onde se radicou e se enraizou, criou família e atuou participando do modernismo brasileiro. Daí a abrangência dos objetos de seu olhar, ora aflito, ora sereno, no contexto da vida de seu tempo: o século 20, com suas rupturas e esperanças no Brasil e no mundo.

Os objetos do olhar de Segall adquiriram a especificidade criativa do método de seu modo de ver: a de quem tinha o pleno domínio das técnicas da linguagem das artes plásticas e assim soube transformar a intencionalidade do seu olhar numa obra original.

Existem vários temas recorrentes na obra de Segall. Entre eles, as vicissitudes da condição judaica e as paisagens. Estes temas não assumem no seu modo de ver uma configuração definida continuamente aperfeiçoada (como é o caso de Morandi). Vão além da pura retomada do tema. Traduzem na hermenêutica da intencionalidade do seu olhar uma recuperação de prévias proposições reassumidas para a ampliação ou renovação de expressões anteriores. É o caso, por exemplo, dos desdobramentos do paradigmático Eternos Caminhantes (óleo, 1919).

As duas recentes exposições oferecem ao visitante a oportunidade de apreciar os múltiplos modos de ver da criatividade de Segall na lida com seus temas recorrentes — os destas duas exposições e de muitos outros que elas não abrangem.

A exposição no Museu Segall tem dois módulos. O primeiro expõe culturas bananeiras na obra de Segall. Tem a curadoria de Ana Carolina Carmona Ribeiro, que escreveu o pequeno guia de botânica modernista. São paradigmas desta vertente Bananal (óleo, 1927), que tem como antecedente temático Menino com Lagartixa (óleo, 1924).

O segundo módulo tem a curadoria de Pierina Camargo, devotada e qualificada integrante da equipe do museu. Intitula-se Lasar Segall, outras paisagens no horizonte e aponta como a recorrência do objeto do olhar de Segall assume novas formas de seu modo de ver: as várias paisagens brasileiras, o Rio de Janeiro, a favela, as paragens de Campos do Jordão e a série das depuradas Florestas.

Segall, em depoimentos sobre a sua infância, salientou como foi marcado pelas imagens de seu pai — que era um escriba da Torá — preparando e compondo as arquitetônicas letras hebraicas, que contêm em seu traçado a voz da tradição da verdade revelada. Segall conhecia bem as letras do alfabeto hebraico, das quais gostava imensamente e que estão presentes em muitas de suas obras.

Um exemplo de convergência entre as letras e o visual é o óleo Velhice de 1924. Nele está representado um idoso reclinado de barba branca e olhos fechados com um gorro e uma manta agasalhadora. No quadro, numa mesa ao lado, está um relógio marcando as horas do fim da tarde. No colo, um livro com letras hebraicas. É a abertura de Qohélet, o Eclesiastes que é a grande meditação bíblica sobre o tempo, que se inicia com “vaidade das vaidades” que Haroldo de Campos transcriou como “névoa nada”.

As letras hebraicas no quadro são uma chave explicativa do modo de ver de Segall do “névoa nada” na qual “tudo tem seu tempo determinado e há tempo para todo o propósito debaixo do céu”, inclusive “o tempo de nascer e o tempo de morrer”. Este se avizinha do idoso retratado.

Segall foi um pintor de almas, como escreveu em 1913, seu crítico em Campinas, Abílio Álvaro Miller, antecipando uma vertente da trajetória da sua obra. Em Velhice, pintou uma alma no seu entardecer. No quadro, o impacto visual do retratado se mescla e se amplia com o código das letras da voz da tradição judaica. É um modo de ver representativo da maneira pela qual, com frequência na sua obra o olhar do particularismo da condição judaica se traduz na universalidade da condição humana, como por exemplo em Navio de Emigrantes (óleo, 1939-1941).

Link da publicação: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/segall-em-duas-exposicoes/

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Sobre o autor

Celso Lafer