O Estado brasileiro parece ter desistido de definir quem seremos. Não define o que e como quer ser no futuro
Horacio Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski
Valor
Coisas curiosas acontecem neste país tropical. É o Cindes (Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento), e não o Ministério da Economia, que tem o mais completo estudo sobre liberalização do comércio externo brasileiro. É o Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), e não o Ministério de Minas e Energia, que produziu o melhor entendimento sobre transição energética. Os melhores estudos sobre inovação? São da CNI/MEI, da Fiesp e do Iedi, e não do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações. Educação Fundamental – os entendidos estão no “Todos pela Educação”. Educação Profissional e Tecnológica – os especialistas se reúnem na Fundação Itaú. Os grandes estudiosos da área de saúde estão no IEPS (Instituto de Estudos para Políticas de Saude), e não no Ministério da Saúde.
Foram ações do Programa “Todos pela Saúde”, agora um Instituto, que criaram inteligência em entender as particularidades fundamentais da pandemia, e o “Unidos pela Vacina”, que com uma agilidade sem hierarquia e com foco em resultados, ocuparam os espaços vazios criados pela ausência de ação governamental diante do flagelo da covid.
O Estado brasileiro parece ter desistido de definir quem seremos. Não define o que e como quer ser no futuro
No caso da Amazonia, das mudanças climáticas, do uso da terra, da proteção de biomas, os melhores trabalhos estão no Imazon, no Observatório do Clima, no Instituto Arapyaú, no ICS (Instituto Clima e Sociedade), na SOS Mata Atlântica. Queremos acesso a mapas de uso da terra no Brasil, entre 1985 e 2021 com resolução de 30 metros? Não procuremos no IBGE, busquemos no MapBiomas. O mais amplo levantamento sobre o uso de insumos da biodiversidade amazônica para aplicações que vão de produtos artesanais, alimentos funcionais, defensivos a filmes biodegradáveis foi realizado pela WTT – World-Transforming Technologies.
Precisa entender de violência – procure o Instituto Sou da Paz ou o Instituto Igarapé. Curioso sobre alternativas aos programas de responsabilidade social do governo? Dirija-se ao CDPP (Centro de Debate de Políticas Públicas) ou à Casa das Garças. De onde veio a proposta mais sólida de reforma tributária: do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal).
Quer conhecer o melhor sistema de acompanhamento de informações sindicais? Não procure o Ministério do Trabalho, vá diretamente ao site do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), entidade criada e mantida pelo movimento sindical brasileiro. Quer conhecer todos os meandros do comércio ilegal do ouro? Selecione entre os estudos do Instituto Escolhas e os do Instituto Socioambiental. Quer conhecer propostas para a política ambiental brasileira em 2023 e 2024? Leia o trabalho “Construindo uma potência ambiental” organizado pelo Observatório do Clima.
Esta é apenas uma lista sumária. Há instituições públicas de excelência planejando o país? Temos o Ipea, a EPE, a Infra SA, a Fiocruz e ainda outras. Há programas eficazes e pessoas capazes no governo, mas que nem sempre operam otimizando seus recursos, com uma orientação clara, um programa de metas e um processo continuado e sistemático de avaliação. É só observar a incrível quantidade de ONGs, associações, Institutos, Fundações e ações individuais e coletivas para se perceber que é o setor privado – majoritariamente instituições sem fins lucrativos – que crescentemente se organiza para pensar o Brasil.
Isto não é todo mau, mas Estado nenhum pode prescindir de planejar o seu futuro. São os eleitores – afinal – que referendam direta ou indiretamente os formuladores das políticas públicas que deveriam organizar o nosso futuro.
O Estado brasileiro parece ter desistido de definir quem seremos. Não planeja, não define o que e como quer ser no futuro. A iniciativa privada, via as ações de mercado de seus atores, deve certamente ter um papel importante a exercer. Mas o Estado não pode abdicar de estabelecer o que e como devemos construir os arcabouços da saúde, educação, inovação, segurança pública, transporte, habitação popular, defesa e tantas outras áreas. A definição da política ambiental, para ficar apenas em mais um exemplo, não é tarefa para o setor privado: é obrigação dos poderes Executivo e Legislativo brasileiro, legitimados pelo voto popular.
Não queremos com isto privilegiar um Estado centralizador e patrimonialista, ao contrário, mas, com sua capacidade radicular e escala nacional, ele tem um papel central a cumprir.
O debate sobre caminhos, depois de um longo processo eleitoral, às vésperas do início de um novo governo, causa a impressão de que estamos partindo de um papel em branco para reinventar o país, impulsionado por um voluntarismo desatento aos erros e acertos do passado e às boas formulações já disponíveis. Talvez fosse o momento de redefinir o papel do Estado no estabelecimento das políticas públicas. A boa notícia é que há inúmeras instituições privadas que podem fornecer subsídios e força de trabalho de muito boa qualidade para que este processo tenha sucesso. A má é que muitas vezes elas são entendidas como inimigas, concorrentes, numa visão tacanha e que desperdiça a capacidade de unir a sociedade em torno de projetos nacionais de prazo mais longo.
É hora de remontar a capacidade de planejar do Estado brasileiro. Mas fazê-lo com cuidado e com sabedoria, usando plenamente os conhecimentos já acumulados por anos de trabalho do setor privado. Fazê-lo criando competências no setor público ao mesmo tempo em que se valoriza o trabalho que inúmeras organizações majoritariamente não-governamentais fizeram e devem continuar fazendo, para termos sempre disponíveis visões alternativas, fonte de valiosos subsídios ao trabalho do planejamento público.
É hora de somar. Aos eleitos, a palavra e a ação.
Horacio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski são empresários.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-incrivel-historia-de-um-pais-que-terceirizou-o-planejamento.ghtml
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais
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