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Por que a herança de Bolsonaro na economia não é tão ruim assim

FGV IBRE

Muitos aspectos negativos do governo Bolsonaro tornam difícil uma avaliação desapaixonada. Mas o legado econômico do quadriênio de Bolsonaro parece melhor do que imaginávamos há pouco tempo, e o orçamento de 2023 é exequível.

Não se discute que o governo Bolsonaro teve um desempenho muito ruim em inúmeras áreas, como, por exemplo: educação, meio ambiente, relações internacionais, saúde, política de segurança pública, direitos humanos em geral e dos povos originários em especial etc.

Adicionalmente, é verdade que o governo federal tencionou as instituições democráticas e que a pessoa do presidente tem opiniões horríveis sobre tortura e morte. Assim, é muito difícil uma avaliação desapaixonada do legado do governo.

No entanto, na economia e na política fiscal a discussão é mais complexa. Há uma clara melhora cíclica na economia. O crescimento de 2022 deve fechar próximo de 3%. Adicionalmente, recente revisão do IBGE da série das Contas Nacionais elevou em muito o crescimento de 2021. O legado de crescimento do quadriênio de Bolsonaro parece melhor do que imaginávamos há pouco tempo.

A taxa de desemprego fechou outubro em 8,3%, o menor valor desde maio de 2015. Os salários crescem acima da inflação desde julho e encontravam-se, em outubro de 2022, 5% acima do valor do mesmo mês de 2021. A massa salarial real em outubro de 2022 foi 11,6% superior à do mesmo mês de 2021.

A inflação está em queda e, mesmo com a reversão das desonerações em 2023, se houver, nada impede que o Banco Central (BC) atinja a meta em 2024, antes, provavelmente, das demais economias emergentes. A pronta resposta do BC, que recentemente adquiriu a sua independência operacional, tem ajudado em muito a moderação dos preços e a reancoragem das expectativas inflacionárias para 2023 e 2024.

Além da independência do Banco Central, a reforma da Previdência e a Lei do Saneamento são legados institucionais importantes do quadriênio terminado em 2022.

Na área fiscal há, como já apontado pela coluna, melhora incremental desde 2015. Em 2021, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), o superávit primário estrutural da União foi próximo de zero. Somente teremos os números para 2022 no próximo ano, mas, se houver reversão das desonerações do PIS e da Cofins, o número para 2022 não deverá ser muito diferente do de 2021. A razão é que, caso seja revertida, a desoneração torna-se uma perda de receita não recorrente, que não afeta o resultado estrutural – não afeta, portanto, o resultado de 2022.

Para termos uma ideia da melhora que tem ocorrido na área fiscal, basta lembrar que a União apresentou em 2014 um déficit primário estrutural de 2,4% do PIB, e, em 2018, déficit de 1,6% do PIB. Aos trancos e barrancos, com muitas idas e vindas, desde 2015 temos arrumado a política fiscal. Muito há ainda por fazer.

Nesse contexto, há um acalorado debate sobre a natureza da herança do atual governo na área fiscal, bem como a exequibilidade do orçamento em discussão no Congresso a partir do Projeto de Lei Orçamentaria Anual (PLOA) para 2023, que o ministro Paulo Guedes enviou.

A coluna considera que o PLOA é exequível com pequenas adições – já retorno a esse ponto – e também que a herança fiscal de Paulo Guedes é positiva.

Há inúmeras críticas ao ajuste fiscal de Paulo Guedes e ao PLOA. Vale a pena revermos essas críticas.

Uma primeira crítica é que o ajuste fiscal foi obtido por meio de compressão excessiva de despesas de primeira necessidade e, portanto, não é sustentável. Dois primeiros exemplos são o congelamento do valor real do salário mínimo (SM) e redução do valor real dos salários dos servidores federais. No entanto, essas duas políticas foram acertadas.

Tivemos ao longo do período de 1995 até 2017 forte política de recuperação do SM. Como apontado pelo meu colega do FGV IBRE, Manoel Pires,[1] nesse período o valor real do SM cresceu 167%. Esse crescimento foi muito além do aumento da produtividade do trabalho, que, segundo o Observatório da Produtividade do FGV IBRE, cresceu 25,5% no mesmo período. A política de recuperação do SM foi de, de fato, uma recuperação.

A questão: vale a pena continuar com a política? Ela tem custos fiscais importantes. Um caminho para avaliarmos se a política atingiu um limite é comparar o SM com o salário médio e mediano da economia. O SM de R$1212 é 44% do salário médio brasileiro de R$2732, e 76% do salário mediano brasileiro de R$1600. O SM está elevado, para a realidade do país, ou está baixo? Uma forma de responder à indagação é olharmos padrões internacionais. As mesmas estatísticas para a média dos países da OCDE são de 43% e 55%. Nosso SM, dada a realidade de nosso mercado de trabalho, não é baixo em termos internacionais. Em particular, em função de nossa elevada desigualdade, já foi feito um esforço considerável de elevar o SM para valores bastante próximos do salário mediano. Assim, a manutenção do valor real me parece correta. Se a situação orçamentária fosse mais folgada, entendo uma decisão política de retomar as elevações, mesmo com o nível elevado. Mas não com o atual rombo no orçamento que ainda temos.

A política de contenção dos salários do serviço público federal também parece acertada devido aos elevados prêmios de salários que eram pagos aos servidores, de 67%, antes da epidemia, quando se faz a comparação com ocupações equivalente no setor privado.[2] Evidentemente, o governo que termina não fez uma reforma administrativa que repensasse a carreira e contribuísse para ganhos de eficiência no serviço público. Pena a oportunidade perdida. Essa será uma tarefa para o novo presidente.

Outra crítica ao PLOA 2023 é que ele não tem previsão para a manutenção do benefício básico do programa Auxílio Brasil – que retornará ao seu nome original de Bolsa Família – em R$600. O custo dessa política de R$50 bilhões seria uma herança maldita fiscal de Bolsonaro. Aí me parece haver uma confusão: promessa de campanha não é política pública. Lula, bem como Bolsonaro, prometeu manter os atuais R$600. Mas nenhum deles negociou com a sociedade as medidas de financiamento do novo Bolsa Família. A herança maldita é da campanha eleitoral e não de Paulo Guedes. É importante separar o joio do trigo aqui.

São necessários R$8,5 bilhões para zerar a fila do SUS. Também é necessário recompor o orçamento de diversos programas: programa Farmácia Popular, R$1,2 bilhão; merenda escolar, R$1,5 bilhão; Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia, R$6 bilhões; e Lei Aldir Blanc, R$3 bilhões. Somando todos os itens, chega-se a R$20 bilhões. A previsão no PLOA 2023 para gastos com o orçamento secreto, cujos pagamentos de final de ano Bolsonaro cancelou, é da ordem de R$19 bilhões.

Lula foi eleito para fazer política. Um dos elementos importantes da política é o relacionamento do Executivo com o Congresso Nacional. O item inicial de relevo é a construção da base de sustentação do governo no Congresso Nacional. Essa construção precisa ser feita a partir de um programa comum de governo e de uma eficaz política de compartilhamento de poder. De preferência que a coalização seja a mais homogênea possível do ponto de vista ideológico e que a distribuição de poder entre os partidos guarde proporcionalidade com o peso de cada partido na coalizão. É perfeitamente possível, no bojo de uma negociação da construção de uma nova coalizão, redirecionar os gastos do orçamento secreto para atividades fins do Estado brasileiro ou para políticas de governo vistas como altamente meritórias.

A avaliação da coluna é que há nessas alegações de herança maldita ou de orçamento inexequível uma certa negação da política.

Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de dezembro de 2022.

Link da publicação: https://blogdoibre.fgv.br/posts/por-que-heranca-de-bolsonaro-na-economia-nao-e-tao-ruim-assim

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Samuel Pessôa