Folha
Desde 2014 vivemos sob um conflito distributivo aberto. Isto é, o Congresso Nacional (CN), com a liderança do presidente da República (PR) —no nosso presidencialismo de coalização, nesses temas, é o CN que tem a última palavra—, estabeleceu direitos a indivíduos e empresas sobre rendas do Estado e bases tributárias que não conversam entre si.
A expressão, na contabilidade do setor público dessa inconsistência, é o déficit fiscal estrutural: em condições normais de operação, o Estado brasileiro arrecada menos do que gasta, e estruturalmente a dívida pública é explosiva.
Vale insistir: esse é um problema do CN e, em última instância, da sociedade. O PR pode se beneficiar indiretamente de uma solução mais definitiva para nosso conflito distributivo aberto, pois isso melhoraria as expectativas, reduziria risco e, consequentemente, promoveria um ambiente mais construtivo para o investimento e o crescimento econômico.
Segundo cálculos de meu colega do FGV Ibre Bráulio Borges, a partir de dados da ANP (Agência Nacional do Petróleo), a receita do setor extrativo mineral para a União, que foi de 0,9% do PIB de 2010 até 2019, será, de 2023 até 2031, por volta de 2,5% do PIB, uma elevação de 1,6 ponto percentual (pp) por ano. O ganho de receita do setor extrativo mineral virá essencialmente da elevação da produção de 3,5 milhões de barris por dia para 6 milhões até o fim da década, segundo projeções da ANP.
Dado o comportamento das demais fontes de arrecadação do setor público, que essencialmente acompanham a economia, e incluindo o ganho adicional anual de 1,6 pp do setor extrativo mineral, a receita de impostos líquida para a União será nos próximos anos em torno de 18,5% do PIB. Esse é o ponto de partida para a nova regra fiscal.
O gasto em 2023 será por volta de 19% do PIB. Parece que a economia política brasileira não consegue conviver com gasto menor. Paulo Guedes trouxe o gasto público em 2021 e 2022 para 18,1% do PIB e houve brutal grita pública e discurso de herança maldita na área fiscal. Assim, o ponto de partida será um gasto de 19% do PIB.
Para que a dívida pública não tenha trajetória explosiva, teremos que ter um superávit primário de 1,5% do PIB, já sendo bem otimista. Dado que o ponto de partida é um déficit estrutural de 0,5%, temos hoje um buraco fiscal de 2% do PIB ou R$ 200 bilhões, aproximadamente.
É esse hoje, com algum otimismo, o tamanho de nosso conflito distributivo.
Na imprensa, saiu que Haddad pretende resolver o problema reduzindo lentamente o gasto de 19% do PIB. Ao longo dos próximos anos, o gasto cresceria a uma velocidade menor do que o PIB por dois motivos. Primeiro, a inflação do PIB tem sido nas últimas duas décadas sistematicamente maior do que a inflação do consumidor em aproximadamente 0,9 ponto percentual. Segundo, o gasto real deflacionado pelo IPCA cresceria na velocidade do crescimento populacional, 0,5 ponto percentual a menos do que o crescimento do PIB real.
A dificuldade é que, com esses parâmetros, teremos um superávit de 1,5% do PIB —que é o necessário para estabilizar a dívida pública (com algum otimismo, vale lembrar)— somente em 2031. Antes disso, a dívida pública já explodiu.
Para que a regra fiscal consiga estabilizar a dívida pública, a sociedade terá que entregar ao Estado brasileiro pelo menos 1% do PIB de receita, ou R$ 100 bilhões. E esse ganho de receita precisa vir limpinho para compor o superávit primário. Isto é, o ganho de receita não pode ser compartilhado com estados e municípios nem ser vinculado a outras linhas do orçamento público, como saúde, educação ou assistência.
Esse é o tamanho do desafio que, como sociedade, temos pela frente.
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.