A posição de reservas não chega a ser preocupante, mas não é tão robusta como no passado
Valor
O período que vai de meados dos anos 1980 até 2007 (antes da grande crise financeira global) é usualmente caracterizado, quando se refere à economia americana e dos países desenvolvidos em geral, como “A Grande Moderação”. Isto porque esses anos foram marcados por uma variância do produto relativamente baixa, comparada a períodos anteriores ou posteriores. A variância do PIB mundial subiu de 0,14 para 2,34 pontos percentuais, especificamente, entre 1987-2007 e 2008-2023.
Assim, qualquer discussão sobre as reservas deve partir da constatação que estamos em um ambiente macroeconômico global mais volátil. Além disso, com uma guerra na Europa, e crescente rivalidade geopolítica no Indo-Pacífico, as condições para cooperação internacional para enfrentar problemas macroeconômicos são mais fracas do que no princípio do século.
O governo deveria considerar a retomada gradual de programa de recomposição de reservas líquidas
O FMI, quando lista os benefícios de se deter um nível “prudente” de reservas, inclui: reduzir a probabilidade de crises no balanço de pagamentos, ajudar a preservar a estabilidade econômica e financeira e criar espaço para políticas econômicas autônomas. Este último benefício começou a se materializar, no caso brasileiro, com a constituição de um volume importante de reservas internacionais e a mudança da posição cambial líquida do governo, de devedor a credor líquido. Assim, quando o real se enfraquece, a posição financeira do governo melhora, o que em última instância disciplina os preços de ativos e viabiliza a adoção de políticas anticíclicas.
Graças à superação da vulnerabilidade externa, os gestores da nossa economia puderam atuar de forma anticíclica, tanto na crise de 2008-09, quanto no período da pandemia, quando costumavam elevar a taxa de juros, por vezes agressivamente, em crises anteriores. Outra mudança foi na qualidade da nossa inserção na comunidade financeira internacional. Um país que era usuário recorrente e intenso dos recursos do FMI, logrou conseguir um acordo de swap recíproco de moedas com o Fed, em 2008, sem condicionalidades, fato que se repetiu em 2020.
Essa mudança transformacional começou quando o Banco Central, ao qual compete por lei a gestão cambial no país, concebeu e anunciou um programa de compra de reservas internacionais em janeiro de 2004 – na época as reservas estavam em cerca de US$ 50 bilhões. O programa, executado por meio de leilões, e suplementado pela colocação de swaps cambiais reversos (equivalente a compra de dólares futuros), duraria até o início dos anos 10, tendo sofrido uma breve interrupção durante a fase mais aguda da crise financeira internacional (o BC interrompeu as compras pouco antes da quebra da Lehman Brothers, em setembro de 2008, e retomou o programa no início de maio de 2009).
Em termos nominais, as reservas atingiram o máximo (US$ 388 bilhões) em 2019, e, líquidas de swaps, atingiram o pico de US$ 378 bilhões, em 2012. Mas o valor nominal de reservas considerado isoladamente é enganoso. As reservas devem ser avaliadas em relação a outros indicadores relevantes. Historicamente, o FMI comparava reservas com o volume esperado de importações em uma determinada janela de tempo (usualmente três meses). Outra medida que costumava ser popular nos anos 1990 era que as reservas deveriam cobrir a dívida vincenda em um ano (regra Greenspan-Guidotti).
Mesmo países com volumes nominais de reservas aparentemente elevados, podem sofrer pressões cambiais significativas se os mesmos forem inadequados em relação aos agregados monetários. Para um país com a certa fragilidade fiscal, como o nosso, o risco maior vem exatamente da possibilidade de fuga de capitais, mais do que do comportamento das exportações ou importações.
Quando consideramos as reservas como proporção das importações, o Brasil encontra-se ainda em situação bastante confortável, com uma razão de cobertura de mais de nove meses. Considerando agora a cobertura da dívida que vence em 12 meses, constata-se que a
tranquilidade também é elevada, com uma razão acima de 200%.
Já quando comparamos as reservas com um agregado monetário, como o chamado M2 (geralmente definido como numerário, depósitos à vista e instrumentos com alta liquidez), o quadro é menos tranquilo: com 23% estamos em torno do benchmark de 20%, e bem abaixo do máximo de 45% observado em outubro de 2012. Levando em conta um agregado monetário ainda mais extenso, M4, a razão de cobertura encontra-se em 11%, ante um máximo de 20% em 2012.
O FMI tem trabalhado com um conceito mais amplo de adequação de reservas, o ARA (Assessing Reserve Adequacy), que leva em conta a dívida externa de curto prazo, outros passivos externos, agregados monetários e exportações, e inclui ajustes para países exportadores de commodities. Uma razão de ARA entre 1 e 1,5 é considerada adequada, abaixo (acima) disso as reservas são consideradas insuficientes (excessivas). Na divulgação mais recente o Brasil aparece com 1,36, se utilizarmos as reservas brutas no denominador, mas pouco acima de 1 se levarmos em conta também a posição de swaps cambiais. Em resumo, também por essa métrica, a posição de reservas não chega a ser preocupante, mas não é tão robusta como no passado.
Em vista do acima exposto, avalio que, se a conjuntura global permitir, as autoridades deveriam considerar a retomada de um programa de recomposição de reservas líquidas, a preços de mercado, a ser implementado gradual e cautelosamente, começando pela redução da posição de swaps.
Uma crítica usual a essa sugestão é que acumular reservas custa caro, dada a diferença entre as taxas de juros internas e externas. Verdade, só que é um seguro que a história demonstrou ter valido a pena – e com a alta de juros nos EUA, o custo tem caído. De resto, é muito difícil argumentar que o problema fiscal brasileiro tem origem no custo de acumulação de reservas.
Outra objeção frequente é que a prioridade agora seria reduzir a taxa de juros, para o qual contribui um real em apreciação. Cabe lembrar que a compra de reservas não impediu a forte apreciação do real observada entre 2004 e 2011. Vale notar, também, que reservas são compradas quando o mundo permite, não quando o Banco Central deseja. Finalmente, não devemos esquecer o básico: temos um regime (recentemente aprimorado pelo CMN) de metas para a inflação, e não para as taxas de juros.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/vale-lembrar-das-reservas.ghtml
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