Folha
Tenho escrito que a reforma tributária (RT) tem diversos paralelismos com o Plano Real. Vale organizar as ideias. De início, é relevante ressaltar a diferença principal: não haverá impacto imediato de redução da pobreza. No entanto, a aprovação da RT trará um ganho imediato de melhora da perspectiva de crescimento, que deve gerar alguma redução na percepção de risco.
Vejo quatro semelhanças com o Plano Real.
A primeira é o efeito alocativo. Para conviver com a inflação crônica e crescente, as empresas tinham que ter departamentos financeiros hipertrofiados. Adicionalmente, em cada esquina das cidades havia uma agência bancária. Se não fosse a distorção, no caso a inflação, esses recursos poderiam ser empregados em atividades produtivas.
A inflação produz má alocação dos fatores de produção. O mesmo ocorre com a complexidade tributária. No caso, temos hipertrofia dos departamentos de contabilidade nas empresas, e em cada esquina de nossas cidades há escritórios de direito tributário, além de boa parcela do Poder Judiciário ser empregada em litígios tributários. Agravam a má alocação os investimentos feitos exclusivamente em razão da arbitragem tributária. Caminhões subindo e descendo pelas estradas brasileiras sem necessidade.
A segunda semelhança é a forma como evolui a distorção. Quando a inflação é baixa, os efeitos deletérios são pequenos, todos se adaptam e há até alguns que ganham. Com a hiperinflação, quase todos perdem (a exceção são os bancos). Há um ponto a partir do qual se forma uma coalizão majoritária que sustenta a estabilização. O mesmo ocorre com a complexidade tributária. A partir de um nível fica quase impossível fazer negócios. Mesmo quem tem um regime especial passa a aceitar a RT, pois os ganhos sistêmicos mais do que compensam sua perda localizada com a reforma.
A terceira semelhança é a necessidade de haver uma transição que respeite o status quo. A situação corrente é péssima, mas funciona. O novo tem que ser criado a partir do velho sem grandes rupturas. Exatamente como a China adotou a economia de mercado na virada dos anos 1970 para os anos 1980. No Real, a transição foi muito rápida, com duas moedas. Na RT, a transição será longa.
O desenho da transição da PEC 45 encerra um verdadeiro ovo de Colombo. Imposto tem duas pontas: a pagadora e a recebedora. Do ponto de vista da eficiência produtiva e da redução de litígios, a ponta que importa é a pagadora de impostos. A PEC 45 prevê duas transições com prazos distintos. A transição da repartição federativa (a ponta recebedora) é mais longa, o que aumenta a chance de os governadores aceitarem a RT.
A quarta semelhança é o impacto sobre a transparência. A inflação crônica e crescente torna o sistema de preços muito ruidoso. As pessoas perdem a noção dos preços relativos dos bens e serviços. A complexidade tributária tem o mesmo impacto. Os preços relativos deixam de indicar os custos sociais e passam a refletir as políticas tributárias da União, estados e municípios.
Mas o pior é que a complexidade tributária impede que o cidadão saiba o custo do Estado brasileiro —e nesse ponto a RT vai até além da estabilização. A transparência tributária deve ser, conjuntamente com a maior eficiência, o grande ganho da RT. Por esse canal, devemos esperar que a explicitação, para o cidadão, do custo de manutenção do Estado gere pressões para elevar a eficiência do setor público.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2023/07/reforma-tributaria-e-estabilizacao-macroeconomica.shtml
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