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Os 30 anos do Real

Em um país com desempenho econômico sofrível, não é pouco que o Plano Real tenha contribuído para reduzir a desigualdade e a pobreza

Valor

O corrente ano marca o trigésimo aniversário do Plano Real, que logrou debelar a hiperinflação e, assim, viabilizou os avanços econômicos e sociais das últimas décadas. Tratou-se de um dos principais divisores de águas da economia brasileira no século XX e provavelmente da maior conquista, até aqui, do regime democrático – a menos para aqueles que acham que programas relevantes de transferência de renda e redução de pobreza poderiam ser efetivos em ambiente de instabilidade monetária.

Os desastrosos anos 1980 foram marcados pela crise da dívida externa e hiperinflação, mas o problema inflacionário brasileiro vem de antes. É verdade que o país conviveu com inflação de três dígitos desde o início dos anos 1980, e quatro dígitos entre 1989 e a estabilização, excluindo episódios de malfadados congelamentos de preços. No entanto, o fato é que o Brasil experimentou altas taxas de inflação por boa parte do século passado. Entre o final da década de 1940 e o Plano Real, o país teve quase meio século (espaço de tempo que cobre duas gerações) sem observar inflação anual de um dígito.

Quem nasceu em 1950, por exemplo, apenas foi experimentar inflação anual abaixo de 10% aos 44 anos de idade. A inflação anual média foi cerca de 17% nos anos 1940, 19% nos anos 1950, 47% nos anos 1960, com taxas particularmente elevadas entre 1962 e 1964, 34% nos anos 1970, 270% na década de 1980 e 1840% nos primeiros anos da década de 1990. A escalada inflacionária dos anos 80 e 90 ocorreu a despeito dos citados congelamentos de preços. O governo interveio recorrentemente na vida econômica, forçando quebras de contrato e usualmente promovendo redistribuições de renda a favor de devedores.

Por que o país fez essa opção inflacionária? É um tema complexo, mas creio que a explicação passa por três fatores. Em primeiro lugar, o Brasil cresceu a taxas rápidas até o início dos anos 1980, mesmo acumulando severos desequilíbrios macroeconômicos – até que a conta chegou. Outro ponto é que, por muito tempo, foi popular, na profissão, a teoria da inflação estrutural, que atribuía o processo inflacionário a gargalos de oferta, notadamente no setor agrícola, de certa forma vistos como naturais em uma economia periférica que crescia muito, minimizando ou ignorando por completo a importância das políticas fiscal e monetária para tal estado de coisas, uma visão equivocada. Finalmente, vivemos uma grande Ilusão. Desde o final dos anos 1960 e especialmente nos anos 1970, havia certo consenso no establishment brasileiro que a indexação anulava boa parte dos malefícios da inflação. O país era visto como um exemplo de indexação bem-sucedida e de boa convivência com a inflação.

Os diversos mecanismos de indexação de preços (e salários) existentes na economia faziam com que pressões temporárias acabassem sendo perenizadas. Nesse contexto, a inflação duplicou de patamar na virada dos anos 1970 para os anos 1980, devido a uma maxidesvalorização – que visava elevar a taxa de câmbio real – e do aumento da frequência de reajustes salariais, saindo da faixa de 50% para 100%. A inflação dobrou de patamar de novo no início dos anos 1980, depois de outra maxidesvalorização, indo para 200%.

As dificuldades externas levaram o governo, ainda no regime militar, a adotar políticas de ajuste. Estas, ao custo de uma recessão entre 1981 e 1983, lograram mitigar o desequilíbrio externo, mas sem conter as pressões inflacionárias – que, ao contrário, se intensificaram. Nesse período, começaram a ganhar espaço no debate as teorias de inflação inercial, segundo a qual um importante determinante da inflação corrente era a própria inflação passada. Essa visão sobre o processo inflacionário se desenvolveu e se consolidou no Departamento de Economia da PUC do Rio de Janeiro. Do diagnóstico inercial surgiram duas vertentes de estratégias de estabilização: o chamado “choque heterodoxo”, que combinava congelamento de preços com desindexação, e a “moeda indexada”, que sugeria a substituição da moeda inflacionada por uma unidade de conta estável. A moeda indexada foi a origem intelectual do Plano Real.

Entretanto, a opção, ao longo do governo Sarney e início do governo Collor, foi pelos choques heterodoxos. Diversos planos, baseados em congelamentos de preços, foram adotados, porém abandonados depois. O foco geralmente era quebrar a inércia inflacionária ao menor custo possível em termos de atividade econômica e capital político. Os planos heterodoxos, cirurgias econômicas altamente invasivas, fracassaram de forma estrondosa.

Plano Real foi um divisor de águas da economia brasileira no século XX e talvez a maior conquista do regime democrático

O Plano Real, apesar de partir também do conceito de inflação predominantemente, mas longe de integralmente inercial, foi muito diferente de seus antecessores. A começar pelas condições iniciais. O avanço da renegociação da dívida externa e o forte desempenho da balança comercial permitiram uma significativa recuperação das reservas, que saíram de US$ 9,4 bilhões de 1991 para US$ 32,2 bilhões em 1993. Outra diferença crucial foi que o plano foi pré-anunciado, desde 1993, e seu sequenciamento, ao contrário dos planos anteriores, ocorreu sem surpresas. Finalmente, a utilização da moeda indexada, no formato da Unidade Real de Valor, a URV, foi uma forma elegante e eficiente de promover a desindexação da moeda – saímos da superindexação da moeda anterior, o Cruzeiro Real, para a não indexação do Real.

O plano foi um grande sucesso. Desde o início. Uma colega do Itaú, Júlia Passabom, fez uma tese de doutorado premiada que encontra efeitos do Plano Real praticamente imediatos. As conclusões do seu trabalho são muito interessantes. A tese mostra que, na hiperinflação, cerca de 80% de todos os preços mudam todo mês, contudo apenas 37% depois do Plano Real; outro ponto é que, durante a hiperinflação, a grande maioria das variações de preços é de alta, enquanto no pós-Real a distribuição ficou equilibrada.

O trabalho oferece um exemplo da vida cotidiana. Antes do Plano Real, por conta da hiperinflação e da altíssima frequência de reajustes, era praticamente impossível para os consumidores definir qual loja praticava os preços mais baratos dos produtos. Além disso, o custo de se estabelecer um ranking entre os estabelecimentos tornou-se excessivo. No caso, longe de ser único, de uma garrafa de Coca-Cola, já em julho de 1994, o ranking das lojas passa a ficar muito mais claro e estável para os consumidores.

Os críticos do plano argumentavam que este faria com que “a distribuição de renda brasileira fosse consagrada como a pior do mundo”. Não só a redução da inflação contribuiu para reduzir a desigualdade, com queda do índice de Gini, mas também a pobreza no país – o percentual da população em estado de miséria caiu 6,5 pontos percentuais entre 1993 e 1995. E o plano, acusado de eleitoreiro, teria efeitos por décadas. Em um país com desempenho econômico sofrível, não é pouco.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/os-30-anos-do-real.ghtml

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita