Folha
Há duas semanas o presidente Lula, em uma em entrevista ao programa Bom Dia, Presidente, da EBC, afirmou: “Eu às vezes fico um pouco irritado com esse negócio de déficit fiscal, se vai ser zero, se não vai ser zero. Essa é uma discussão que nenhum país do mundo faz. Em nenhum país do mundo. A dívida pública bruta dos EUA é 112% do PIB. A do Japão, 135% do PIB. A da Itália é quase 200%. Esse não é o problema”.
A primeira linha da tabela abaixo apresenta a dívida pública bruta como proporção do PIB. Aparentemente, o presidente trocou o número da Itália com o do Japão. De qualquer forma, é verdade que a dívida bruta medida pelo FMI é bem maior para os três países do que para o Brasil.
A segunda linha da tabela apresenta um primeiro motivo para não podermos termos dívida elevada: a taxa de juros é muito maior por aqui do que nos três países. Em particular, nos últimos 23 anos e nos três países, os juros reais têm sido negativos.
O caso da Itália e do Japão é bem fácil de entender. A terceira linha da tabela apresenta os ativos líquidos que cada país tem contra o mundo. Tanto a Itália quanto o Japão são credores do resto do mundo. A posição internacional de investimento é, para a Itália e o Japão, respectivamente, credora em 6% e 78% do PIB.
Ou seja, a dívida pública é elevada, mas o setor privado poupa muito e compensa, portanto, a despoupança do setor público. Esse fato fica muito claro na quarta linha da tabela, que apresenta o superávit de transações externas. Tanto a Itália quanto, principalmente, o Japão exportam poupança (isto é, têm superávits em transações correntes). Em particular o Japão, nos últimos 23 anos, exportou em média 2,9% do PIB em poupança.
A última linha da tabela documenta que as taxas de poupança da Itália e do Japão são bem mais elevadas do que a brasileira. O Japão, apesar de ter uma população bem envelhecida, poupa incríveis 28% do PIB, ante 16% para o Brasil.
Resta analisar o caso americano. Como vimos, a taxa de juros por lá é incrivelmente baixa, de -0,8% ao ano, ante 5,1% para o Brasil. Esse fato pode parecer estranho, dado que os EUA têm um passivo líquido em relação ao resto do mundo de 66% do PIB, bem maior do que o brasileiro, de 39%.
A particularidade americana está associada a ser o emissor da moeda que é a unidade de conta, meio de pagamento e unidade de valor de uso global. Adicionalmente, os EUA funcionam como a grande praça financeira do mundo. Os EUA captam poupança do mundo todo a custo relativamente baixo e investem no mundo todo com uma taxa de retorno maior. Assim, a remuneração dos seus ativos é muito maior do que o custo de carregamento de seus passivos.
A diferença de rentabilidade entre os passivos dos EUA contra o resto do mundo, relativamente aos ativos, é expressa no saldo da balança de rendas do balanço de pagamentos. Essa conta apresenta o resultado de quanto os Estados Unidos recebem de lucros e dividendos subtraído de quanto pagam de lucros e dividendos.
A economia americana, apesar de ter um passivo líquido contra o mundo, liquidamente recebe recursos na forma de juros e dividendos. Desde que a economia passou a ter um passivo contra o resto do mundo, em meados da década de 1980, em nenhum ano pagou mais do que recebeu na forma de juros e dividendos. Ou seja, na prática, a economia americana é credora do resto do mundo. Em linguagem da Faria Lima, diz-se que, na “marcação a mercado”, os EUA são liquidamente credores do resto do mundo.
Assim, se é verdade que Itália, Japão e EUA conseguem carregar expressivos valores, como proporção do PIB, de dívida pública, esse fato não é verdadeiro para o Brasil.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2024/05/por-que-lula-erra-ao-falar-de-divida-publica.shtml
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