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Taxas neutras mudando

Com a aceleração do crescimento das despesas públicas ocorrido na esteira do enfraquecimento e posterior abandono do Teto de Gastos, a maioria das estimativas de taxa neutra voltou a se elevar

Valor

A caixa de ferramentas dos economistas inclui diversas variáveis que, apesar de não diretamente observáveis, são extremamente relevantes para a análise de conjuntura e a elaboração de políticas econômicas, incluindo o PIB potencial e a taxa de juros neutra.

A taxa de juros neutra é geralmente definida como aquela que equilibra a oferta e demanda por poupança e investimento na economia. Ou seja, consistente com o PIB em seu potencial e taxa de inflação na meta. Para conter a inflação, os bancos centrais usualmente trabalham para colocar a taxa real de juros acima do patamar neutro. E, quando a inflação projetada cai abaixo do objetivo ou meta da autoridade monetária, os bancos centrais devem colocar a taxa real de juros abaixo da neutra.

Obviamente, a taxa neutra é importante, mas é apenas um elemento no amplo conjunto de informações utilizado na elaboração de estratégias de política monetária. As dificuldades naturais em se estimar essa variável, notadamente em um período turbulento para as séries de dados, como o imediato pós-pandemia, sugerem cautela na sua utilização, e mais cautela ainda com revisões extremas das estimativas. Ainda assim, os gestores da política monetária e economistas dedicados à análise de conjuntura não devem ignorar essa variável e os sinais que ela pode oferecer.

Uma dificuldade adicional é que, além de não ser diretamente observável, a taxa neutra pode variar ao longo do tempo em resposta a diversos fatores, como a demografia, evolução da produtividade e da política fiscal. Não raramente, os analistas acabam detectando mudanças na taxa neutra a partir do próprio comportamento da economia. Por exemplo, se mesmo depois de um grande aumento ou redução da taxa de juros real, a economia, levando em conta as defasagens usuais, ainda não responde, é possível que a taxa neutra tenha se alterado. Isto é, o verdadeiro grau de aperto ou de estímulo, dado pela diferença entre a taxa real corrente e a neutra, seria menor do que a diferença observada, daí a falta de reação da economia à terapia aplicada.

Em termos concretos, em várias economias as estimativas de taxas de juros neutras caíram na esteira da grande crise financeira global de 2008 como resultado da necessidade de desalavancagem de empresas e famílias, redução investimento e crescimento da produtividade, entre outros fatores. Esse efeito foi particularmente importante nos EUA, o epicentro da crise, onde estimava-se que a taxa real neutra se encontrava entre 0,5 e 1%, ante 2%-2,5% no período pré-crise. As estimativas de juro neutro permaneceram baixas nos anos seguintes, período denominado de “secular stagnation”, até a pandemia de covid-19.

O impacto da pandemia sobre a taxa neutra nos EUA e no mundo foi inicialmente considerado ambíguo ou limitado – posição ainda mantida pelo FMI. Mais recentemente, a maiorias das estimativas econométricas aponta para alguma elevação da taxa neutra americana, fato que foi corroborado pelo Comitê de Política Monetária (Fomc) por meio da publicação do Sumário de Projeções Econômicas nos documentos referentes à reunião de junho.

Há diversas razões que apontam uma elevação da taxa neutra nos EUA. A forte expansão fiscal observada nos últimos 8 ou 9 anos, que precedeu e sucedeu a pandemia, levou a uma expressiva elevação da dívida – 122% do PIB ao final de 2023, ante 102% ao final de 2014. Além disso, a pressão para aumento de gastos segue intensa, seja pelas demandas da transição energética, seja pela necessidade de elevar os gastos em defesa, ao mesmo tempo em que se discute a postergação dos cortes de impostos implementados pelos Republicanos em 2017.

Foco em maior disciplina de despesas deveria ser encampado por todo o governo e não somente pela área econômica

A experiência brasileira não é diferente, uma vez que as estimativas variam ao longo do tempo. A equipe de economistas do Itaú, em trabalho recente, utilizou seis diferentes metodologias para estimar a taxa neutra, incluindo simples filtros estatísticos, estimativas derivadas de preços de mercado, da paridade internacional, bem como da regra de Taylor e modelos estruturais. Várias dessas estimativas são atualizações dos modelos apresentados pelo Banco Central do Brasil no box “Medidas de taxas de juros real neutra no Brasil”, presente no Relatório de Inflação de junho de 2023.

Não surpreendentemente, diferentes metodologias apontam para diferentes estimativas, mas a grande maioria se encontra entre 4% e 5%. Valores distantes desse intervalo contam, pelo menos no momento, com menos apoio empírico e, assim, são menos úteis para a elaboração de cenários e projeções.

O período no qual a taxa neutra parecia ser mais baixa, no caso brasileiro, a julgar pelas estimativas, se aproxima do momento em que o país conseguiu conter o crescimento dos gastos públicos na vigência do chamado Teto de Gastos. Com a aceleração do crescimento das despesas públicas ocorrido na esteira do enfraquecimento e posterior abandono do Teto, a maioria das estimativas de taxa neutra voltou a se elevar.

Considerando unicamente os determinantes domésticos, a agenda de redução da taxa neutra, que coincide com a agenda de redução do risco soberano, passa inevitavelmente por um reforço na disciplina do controle dos gastos públicos, que cresceram, em termos reais, 6% em 2022 e 8,5% em 2023 (ex-precatórios), frente a 1,2% em média entre 2017 e 2019. Essa agenda tem sido defendida pela equipe econômica. Mas, idealmente, o foco em maior disciplina de despesas deveria ser encampado por todo o governo, e não somente sua área econômica.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/taxas-neutras-mudando.ghtml

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita