Depois de muito tempo, um eventual anúncio de política de intervenção cambial nos EUA voltou ao debate
Valor
O Fed apura, há décadas, um indicador de competitividade do dólar. Esse índice é baseado na taxa de câmbio real entre o dólar e outras moedas, ponderado pelo peso das diversas economias no comércio bilateral com os EUA. O indicador está atualmente em 117,99, apenas 2,5% abaixo do máximo recente, observado em outubro de 2022 – o pico do índice, desde 1980, foi 131,51, observado em março de 1985. O indicador encontra-se 16,5% acima da taxa média da série. Configura-se, portanto, um cenário de dólar bastante forte para o padrão histórico.
Nesse contexto, a imprensa tem reportado declarações de pessoas associadas à campanha do ex-presidente Trump indicando disposição de fazer algo para disciplinar ou enfraquecer a moeda. Segundo a governança dos EUA, intervenção cambial é uma decisão do governo, do Tesouro (por meio do Exchange Stabilization Fund), e não do Fed. O processo eleitoral segue muito incerto no país, mas vale pensar sobre o que poderia acontecer caso o novo governo resolva intervir no mercado cambial.
Intervenção dos governos ou bancos centrais para comprar reservas, ou normalizar as condições no mercado cambial, como o Brasil já experimentou várias vezes nesse século, são relativamente corriqueiras em economias emergentes, mas mais raras quando se trata de economias maduras, em especial os EUA. Ainda que raros, episódios de intervenção no mercado global de dólares não são inéditos no período pós-Bretton Woods – após 1973, quando as economias avançadas trocaram o regime de taxas fixas, mas ajustáveis, em relação ao dólar, pela flutuação cambial.
Dois episódios marcam a experiência de intervenção no mercado de dólares desde o fim do regime de Bretton Woods. O primeiro, em setembro de 1985, foi Acordo do Plaza (realizado em hotel de mesmo nome, em Nova Iorque), celebrado entre banqueiros centrais e ministros de finanças do G5, que reunia as principais economias de mercado da época – a saber: EUA, Japão, Alemanha Ocidental, França e Reino Unido. O acordo foi precedido por um episódio mais limitado de intervenção, no início do ano, que quebrou a tendência de fortalecimento da moeda americana. O Plaza veio, de certa forma, para evitar que ela retornasse e para garantir uma moderada (10-12%) depreciação adicional do dólar. As vendas de dólares, notadamente pelo Fed e o Banco do Japão, foram expressivas nos meses seguintes.
O dólar caiu 4% contra uma cesta de moedas, no dia em que o acordo se tornou público, e posteriormente seguiu a tendência anterior de enfraquecimento. Durante o resto do ano e em 1986, o Tesouro americano pareceu usar a fraqueza do dólar para pressionar as demais economias avançadas a adotarem políticas monetárias e/ou fiscais mais expansionistas.
A queda do dólar começou a incomodar exportadores de outras economias avançadas, em especial Japão e Alemanha Ocidental. Isso levou ao segundo episódio: o Acordo do Louvre, em fevereiro de 1987, que visava estabilizar o dólar em seus níveis correntes e envolveu também as principais economias de mercado. Os EUA passaram a tomar medidas para estabilizar a moeda (o aperto da política monetária ajudou), outros países atuaram e o Japão se comprometeu com uma forte expansão fiscal.
O efeito do Acordo do Louvre pareceu passageiro e a mensagem precisou ser reforçada por outro comunicado em dezembro daquele ano. A partir de 1988-89, o dólar retomou seu vigor, baseado mais em fundamentos (melhora do desempenho comercial) do que em ações de política econômica. Se o Plaza forneceu alguns argumentos para os defensores da intervenção, o Louvre atuou mais na outra direção.
Eventual anúncio de intervenção cambial nos EUA poderia ter efeitos importantes, ainda que efêmeros, nos mercados
A eficácia da intervenção ainda é objeto de debate acadêmico, mas as evidências, em linhas gerais, apontam para um efeito sinalização de curto prazo importante. Trabalho recente de economistas do Fundo Monetário Internacional (Working Paper 158, de 2022) indica que intervenção para combater desalinhamentos cambiais em ciclos curtos é efetiva e, ainda, que a ação persistente tende a ter mais eficácia do que a atuação episódica.
Como visto acima, segundo uma métrica convencional, o dólar estaria atualmente bastante forte, talvez sobrevalorizado. O déficit comercial, equivalente a 3,8% do PIB em janeiro deste ano, é grande, mas se encontra abaixo da média do século (4,4%). Contudo, mesmo na ausência de argumentos econômicos conclusivos indicando intervenção, considerações de economia política, associadas à estrutura econômica dos Estados-chave nas eleições presidenciais americanas podem levar uma futura administração a contemplar medidas para enfraquecer o dólar.
Tal operação implicaria desafios e dificuldades. Um desafio é que, com a explosão do volume de reservas internacionais, majoritariamente alocadas em ativos americanos, a parcela da dívida pública detida por não residentes chega a 30%, e era menos de 20% nos anos 1980. Uma política deliberada de enfraquecer o dólar ensejaria risco de levar gestores de reservas a diversificarem seus portfólios para outras moedas ou ativos reais.
Outra dificuldade é que um membro fundamental da comunidade financeira global, a China, não tem o mesmo tipo de relação com os EUA do que o antigo clube do G5. Ainda assim, este é um tema que, depois de muito tempo, voltou ao debate sobre política econômica – e, a julgar pelo passado, um eventual anúncio de política de intervenção cambial poderia ter efeitos importantes, ainda que efêmeros, nos mercados.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/raro-mas-acontece.ghtml
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