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Fragmentação global e reservas

Competição entre moedas não é novidade e não necessariamente está associada à fragmentação econômica

Valor

Um tema muito debatido entre acadêmicos e participantes de mercado neste ano tem sido o da eventual fragmentação da economia mundial em distintos blocos. Um seria centrado nos EUA e na Europa, já outro na China. A fragmentação econômica acabaria levando inevitavelmente à fragmentação financeira. Nesse cenário, a composição das reservas internacionais acabaria sendo alterada, em prejuízo do dólar e em benefício de outras moedas, provavelmente o renminbi.

O privilégio exuberante dos EUA, ao imprimir a moeda de reserva global, deve-se a vários fatores, como o tamanho da economia (ainda a maior, em termos nominais), a profundidade, abertura e liquidez de seu mercado de capitais, assim como fatores institucionais (rule of law, transparência) e geopolíticos. Tendo em vista esses fatores, a substituição do dólar como moeda de reserva global parece distante. Ainda assim, para entender as circunstâncias nas quais essa transição poderia ocorrer, vale relembrar a experiência passada da economia mundial. Para tanto, vamos utilizar a base de dados de Eichengreen, Mehl e Chuti sobre reservas internacionais no longo prazo. Nota-se que a transparência quanto à composição de reservas é limitada, de modo que os dados citados abaixo são em geral estimativas.

O dólar nem sempre foi a moeda dominante. Até a Primeira Guerra Mundial vigorava o padrão ouro e cabia à libra esterlina o papel de principal moeda de reserva, notadamente para economias do Império Britânico e periferia, dado que as economias centrais geralmente mantinham reservas em ouro – estima-se que moedas eram apenas 13% do total das reservas. No entreguerras, o mundo conviveu com muita instabilidade financeira e uma tentativa, infrutífera, de reviver o padrão ouro. Nesse período, o dólar emergiu como importante moeda de reserva, enquanto a libra e o franco francês desempenhavam esse papel nos respectivos impérios.

Após a Segunda Guerra, o predomínio econômico dos EUA atingiu o auge, e o regime de Bretton Woods era centrado no dólar, que mantinha uma paridade em relação ao ouro. As reservas eram em dólares, e os bancos centrais podiam convertê-las em ouro a uma paridade fixa. No início dos 1970, enfrentando problemas de balanço de pagamentos, os EUA abandonaram a conversibilidade do dólar em ouro, o que ensejou o início do período de flutuação cambial que dura até hoje. Mesmo sem o lastro metálico, o dólar, pelos fatores citados acima, continuou sendo a principal moeda de reserva sob o novo regime, mas não a única.

Ao longo do período de Bretton Woods, o dólar e a libra foram durante muito tempo as moedas de reserva, ainda que o papel da segunda fosse mais voltado para economias em desenvolvimento. Em 1960, 35% das reservas eram em libras, 61,6% em dólares e o restante em outras moedas. Dez anos depois, com o avanço da descolonização e os problemas econômicos britânicos, a parcela da libra caiu para 13,6%, 73,5% eram em dólares, 3,1% em marcos alemães, 1,4% em francos franceses e 8,4% em outras moedas.

Verifica-se, como mencionado, que o abandono da conversibilidade não prejudicou a preferência pelo dólar como moeda de reserva – a parcela das reservas globais em dólares atingiu o máximo em 1976, em 79,7%, influenciada também pelo boom de acumulação de reservas nos países exportadores de petróleo.

Participação do dólar vem declinando suavemente, de 65,2% em 2014, para cerca de 59% atualmente

Dada a performance econômica superior, a segunda metade dos anos 1970 assistiria à ascensão do iene e do marco alemão no conjunto das reservas globais. A parcela da moeda japonesa saiu de 0,1%, do total em 1973, para 4,4% em 1980, ao passo que a fatia da alemã ocidental subiu de 1,3% em 1972 para 14,9% em 1980, enquanto a parcela do dólar recuou para menos de 70%. O declínio relativo do dólar continuou nos anos 1980 – o mínimo da série para o período pós-Bretton Woods foi verificado em 1990: 50,6%. Nesse ano, 3,0% das reservas estavam em libras (que recuperou relevância), 2,4% em francos franceses, 16,8% em marcos alemães, 8,0% em yen e 19,2% em outras moedas.

A virada do século assistiu à criação do euro, que já nasceu como moeda de reserva, visto que herdou propriedades do franco francês e marco alemão. Em 2000, a nova moeda já respondia por 18% do estoque de reservas, enquanto a fatia do dólar chegava a 71%. O auge de sua participação, até agora, foi atingido em 2009, 28%, diante da grande crise financeira centrada nos EUA. A parcela caiu em decorrência da crise da dívida europeia, mas acabou se estabilizando, em torno de 2014-2015, no intervalo 19% a 21%.

Já a participação do dólar vem declinando suavemente, de 65,2% em 2014 para cerca de 59% atualmente. Três outros desenvolvimentos são dignos de nota: a retomada da relevância do iene, de menos de 4% há dez anos para quase 6% mais recentemente; a crescente importância de “outras moedas”, conjunto que inclui o dólar canadense, franco suíço, coroa sueca, etc, e também da libra; e a emergência do renminbi, cuja parcela saiu de 1,1% em 2014 para 2,8% em 2021, e estaria agora próxima a 2%.

Esse rapidíssimo passeio histórico sugere algumas conclusões. A primeira é que competição entre moedas não é novidade, e não necessariamente é associada à fragmentação econômica – vide a ascensão do iene, marco alemão e euro. A segunda é que relações geopolíticas e militares não são irrelevantes para a composição de reservas (a julgar pelo papel histórico da libra e do franco francês em seus respectivos impérios e áreas de influência, e do próprio dólar em relação a aliados próximos dos EUA, como Alemanha e Japão). Um terceiro ponto é que, mesmo a geopolítica valendo, períodos de performance econômica cronicamente acima (ou abaixo) do peer group acabam levando a aumentos (ou diminuições) da relevância das moedas de reserva. A pior combinação, vivida pelo Reino Unido nos anos 1960, foi de performance econômica ruim e introspecção, com redução da influência geopolítica, fatores que ajudaram a explicar o quase desaparecimento da libra como moeda de reserva. Fica a lição.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/fragmentacao-global-e-reservas.ghtml

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita