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Lição de OSPB

Há áreas do governo em que se deve operar com ‘políticas de Estado’, acima das divisões políticas

Folha

Quando cursava o ensino médio, havia a disciplina de Organização Social e Política Brasileira. Nela, estudávamos os diferentes sistemas políticos. Aprendíamos, por exemplo, que no sistema presidencialista uma mesma pessoa cumpre duas funções: de chefe de Estado e de governo. Achava essa separação artificial e meio sem sentido. É tudo governo, pensava.

Quatro décadas depois, e às voltas com uma inédita polarização política, em que cidadãos brasileiros não conseguem sequer sentar para conversar, percebo, afinal, a importância da distinção. Países precisam de líderes de agremiações rivais (que ocasionalmente, no poder, sejam chefes de governo), mas também de representantes daquilo que os une (chefes de Estado).

Não à toa os brasileiros costumam dar o nome de “rei” (o chefe de Estado, nas monarquias constitucionais) para indivíduos notáveis que cumprem essa função. Como rei, Pelé era o camisa 10 da seleção, muito mais do que o craque do Santos. Roberto Carlos foi dos poucos artistas que conciliaram apelo popular e respeito da elite intelectual —uma espécie de elo entre as classes, em um país tão desigual. Os dois unificaram o país. Não à toa, ambos foram com frequência acusados de posicionamentos anódinos em política. Ser rei, afinal, requer muito comedimento.

Há áreas do governo em que também se deve operar assim, com “políticas de Estado”, acima das divisões políticas.

Uma delas é o Ministério das Relações Exteriores. Os países são mais permanentes do que os governos. Faz sentido que a política externa, que envolve o relacionamento entre diferentes países, seja conduzida a partir de consensos mínimos da sociedade. Um grupo político que ganha eleições majoritárias seguidas vezes não deveria imprimir nessa área seu programa, se ele for minoritário.

Certamente a política externa de Celso Amorim não representa um consenso mínimo na sociedade. Basta ver como a opinião pública reage ao discurso muito ativo contra a hegemonia do dólar, por exemplo, ou ao posicionamento público de Lula em defesa de uma das candidaturas à Presidência dos EUA, ou a um certo alinhamento com a Rússia e o Irã em eventos recentes. A lista é longa.

Todas essas escolhas são legítimas. Foram feitas por um grupo político que ganhou seguidas eleições majoritárias. Podem animar a militância. Podem ser, até, posições que ajudem a aplacar divergências internas, no caso de um partido que ganhe eleições majoritárias, mas destoe ideologicamente da maior parte do Legislativo. No entanto, não são escolhas oportunas para a construção da noção de pertencimento de todos a uma mesma sociedade.

Outro papel público que talvez tenha caráter mais próximo da representação do Estado do que da atuação de governo é o do cônjuge do(a) chefe do Executivo. Há primeiras-damas mais ativas, outras menos, mas tipicamente elas são discretas. Tradicionalmente, primeiras-damas concentram as suas ações em atividades que são vistas unanimemente como importantes e apartidárias. Em geral, iniciativas de combate à pobreza, de apoio à educação, filantropia etc.

Quando Janja, em período eleitoral, pega o telefone e liga para uma candidata à Prefeitura de Porto Alegre para hipotecar apoio, ela partidariza o papel de primeira-dama. Tem todo o direito de fazê-lo. Talvez não seja bom para o país.

Para a construção da nossa cultura e de nossos valores mais permanentes, penso que seria melhor que os governos fossem mais comedidos nesses espaços, para os quais até agora não costumávamos dar muita atenção.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2025/08/licao-de-ospb.shtml

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Sobre o autor

Samuel Pessôa