Iniciativas protecionistas do Brasil também contribuem para inibir a desinflação de comercializáveis e, assim, manter a inflação e juros elevados por mais tempo
Valor
Em uma economia de mercado, o excesso de capacidade em um determinado setor acaba gerando uma pressão baixista sobre os preços, o que comprime margens de lucro e rentabilidade das empresas. No limite, o processo ocasiona a saída ou absorção das empresas menos eficientes e, consequentemente, o ajuste da capacidade à demanda. A saída permite que os fatores de produção, como trabalho e capital, sejam alocados de forma mais eficiente. Esse processo pode ser traumático, em especial no que se refere ao impacto no emprego, no setor que exibe excesso de capacidade, ainda que o mesmo se mostre temporário, na medida em que os trabalhadores podem se realocar em outros setores.
Na prática, seja por preocupações sociais ou cálculo político, governos frequentemente intervém no processo para suavizar o impacto sobre a força de trabalho. Em casos extremos, e a um custo importante para a economia como um todo, o governo impede o ajuste de capacidade, mantendo trabalho e capital alocados de forma ineficiente, o que atua negativamente sobre o crescimento potencial da economia.
Na China, o termo involução é usado para descrever um processo de concorrência de preços predatória, em certas indústrias, que vem ocasionando queda da lucratividade e que pode levar à saída desordenada de empresas e a um ajuste do excesso de capacidade turbulento. Os resultados de montadoras chinesas no segundo trimestre do ano, recém divulgados, confirmam a pressão sobre margens e retornos. O governo chinês está adotando medidas para administrar esse processo de redução da capacidade ociosa, com a chamada política anti-involução.
O foco da política está em cinco frentes: veículos elétricos, baterias elétricas, painéis solares, material de construção (aço, cimento e vidro) e serviços de entrega de refeições. Houve uma grande onda de investimento nessas indústrias nos últimos anos, o que levou a um aumento da capacidade instalada que excede significativamente a demanda doméstica atual e projetada. O quadro de excesso de capacidade se agravou com a imposição de novas tarifas e restrições comerciais pelos EUA. A consequência tem sido uma agressiva competição via preços no mercado interno, acompanhada por aumento das exportações para terceiros mercados, como União Europeia, Índia e Brasil.
A principal consequência da involução, que está sendo enfrentada agora, é uma generalizada e intensa pressão baixista sobre preços de diversos produtos. O índice de preços ao produtor chinês vem caindo há três anos, sendo que o preço de itens como baterias elétricas e painéis solares caíram cerca de 50% e 80% em igual período. Essa deflação acaba sendo transmitida para a economia global.
Dado esse cenário, as autoridades chinesas começaram nos últimos meses a elaborar e anunciar medidas voltadas a organizar a redução do excesso de capacidade. Até agora, a política anti-involução tem incluído uma combinação de discursos, publicação de diretrizes e orientações, bem como medidas para evitar a concorrência predatória.
Desinflação brasileira tem contado com uma contribuição relevante de bens influenciados pela deflação chinesa
As autoridades, cujas manifestações costumam ter impacto muito importante, têm se pronunciado publicamente contra o investimento em setores com excesso de capacidade, bem como a suposta competição desordenada. Têm também procurado direcionar capital para novos setores, evitando os congestionados, citados acima. Há também iniciativas dos próprios produtores em determinadas indústrias para reduzir capacidade e a concorrência via preços – sem aparentemente temer reação da agência de combate à cartelização e regulação de mercados – que tampouco deve reagir à consolidação setorial via fusões e aquisições. Uma revisão da legislação para coibir competição desigual, a ser implementada nos próximos meses, deve incluir provisões contra a concorrência predatória. Há também, em setores como a produção de painéis solares, incentivos para priorizar qualidade, e não quantidade da produção.
Essa não é a primeira vez que as autoridades chinesas buscam administrar processos de ajuste da capacidade. O mesmo ocorreu há cerca de dez anos. A campanha anti-involução de 2015 estava voltada para materiais primários ou semiprocessados, predominantemente produzidos por empresas estatais. Dada a governança de comando e controle regulando essas empresas, a redução da capacidade ocorreu, ainda que não sem obstáculos, de forma mais efetiva e rápida do que podemos esperar quando o excesso de capacidade é observado em empresas privadas – como é o caso atualmente.
Há sinais de que a deflação de produtos industriais na China tem sido repassada para a economia brasileira. Segundo o indicador do Itaú Unibanco sobre os preços de veículos (Idat-Cars), carros elétricos e híbridos, muitos dos quais feitos na China, ficaram 3% mais baratos nos últimos 12 meses, ao passo que os demais ficaram 4% mais caros – apesar da queda do IPI. Um estudo mais amplo, também da equipe Macro do Itaú Unibanco, mostra que as importações chinesas têm de fato o potencial de ajudar a disciplinar os preços de produtos no Brasil – “Made in China: impacto na inflação de bens do redirecionamento das exportações chinesas”, trabalho da Luciana Rabelo.
O processo de desinflação brasileiro tem contado com uma contribuição importante dos preços dos bens comercializáveis, entre eles industriais, que são influenciados pela deflação chinesa. A política anti-involução não deve eliminar por completo a pressão baixista sobre os preços de produtos industrializados naquela economia, mas um arrefecimento dessa tendência já deve limitar o impacto benigno sobre a inflação brasileira. Evidentemente, além do comportamento dos preços de importados no mercado global, iniciativas protecionistas do lado brasileiro também contribuem para inibir a desinflação de comercializáveis e, assim, manter a inflação e taxas de juros elevadas por mais tempo.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/combatendo-a-involucao.ghtml
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