Vero Notícias
O que o “trumpeconomics” e a política econômica do governo Dilma Rousseff têm em comum? Para um dos mais argutos e respeitados economistas brasileiros, Edmar Bacha, a resposta é tão contundente quanto inesperada: a obstinada busca por objetivos incompatíveis. A comparação, uma das várias provocações analíticas desta entrevista exclusiva ao Vero Notícias, sintetiza a perplexidade de um mundo que assiste aos Estados Unidos, arquitetos da ordem liberal global, desmontarem seu próprio legado. Em um momento de acirrado debate e profunda incerteza, poucas vozes são tão credenciadas para decifrar o cenário quanto a de Bacha. Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Ph.D. por Yale, um dos pais do Plano Real e autor do seminal conceito da “Belíndia” – a engenhosa metáfora para o Brasil que é simultaneamente Bélgica e Índia –, o economista oferece um diagnóstico que foge dos chavões e ataca o cerne das transformações em curso.
Nesta conversa, considerada iconoclasta para o atual momento, Bacha desmonta o senso comum em várias frentes. Ele revela a novidade histórica de uma guerra comercial, distinta da ocorrida durante a década de 1930, quando, em represália ao aumento das tarifas de importação promovido pelos EUA, vários países elevaram suas tarifas. Agora, diz o economista, o resto do mundo está se recusando a retaliar, ciente de que o protecionismo é um “tiro no pé“. Aponta o fracasso do grande projeto político ocidental, que apostou na democratização da China via comércio e colheu o oposto: uma ditadura fortalecida. Introduz uma variável que embaralha todo o cálculo: enquanto o tarifaço de Trump age como um freio, um boom monumental de investimentos em Inteligência Artificial acelera a economia americana, tornando o resultado líquido da equação imprevisível.
E, talvez o mais desconcertante, Bacha argumenta que a resposta sobre o futuro da economia global não virá de modelos econométricos, nem dos corredores da OMC em Genebra. Ela será forjada na mais crua política doméstica americana, no redesenho dos distritos eleitorais do Texas e no resultado das eleições de meio de mandato. É com esse ceticismo pragmático e uma clareza cortante que um dos formuladores da estabilidade econômica brasileira analisa a nova era da instabilidade mundial.
Leia a entrevista completa:
Vero Notícias: Os EUA estão revendo praticamente todo o arcabouço político e econômico que construíram depois da Segunda Guerra Mundial. Como o senhor vê essas mudanças?
Edmar Bacha: O que o Trump fez até agora foi criar um enorme grau de incerteza, colocando em suspensão as decisões de investimento relacionadas a bens comercializáveis no comércio internacional. Para todo empresário grande, a vida deve estar muito difícil hoje. Ele precisa acreditar no Trump. E, se resolver acreditar, precisa decidir se isso vai continuar depois de 2029, quando acaba o mandato de Trump.
O que o senhor espera que vá acontecer?
Acho que o clima de incerteza vai continuar, pois a expectativa dos economistas é que haverá muito dano, tanto para a economia americana quanto para a economia mundial, por causa do tarifaço de Trump. As decisões de localização e estruturação de investimento ficam muito complexas. É bem improvável que níveis tarifários como os que estão em vigor hoje persistam.
Por quê?
Porque a tarifa média de importação dos EUA deve estar mais próxima hoje de 20%, o que é maior do que aquela que os Estados Unidos tiveram durante a Grande Depressão, iniciada em 1929.
O aumento de tarifas, como ocorre agora, não foi uma das causas da Grande Depressão?
Ajudou, mas o problema lá foi mais na área monetária. Obviamente, como dizia Joan Robinson, essa política de ‘empobrecer o vizinho’ para poder gerar demanda para seus produtos certamente ajudou o processo que impediu a retomada da economia. Mas tudo isso que o governo Trump está fazendo é muito contrário a todo o processo de integração mundial que a gente observou nos últimos 80 anos. Há, obviamente, por um lado, a questão do desafio da China à hegemonia americana, que cria um novo quadro geopolítico, distinto daquele que tínhamos desde a queda do Muro de Berlim. E, de outro lado, a nova beligerância da Rússia, que colocou toda a perspectiva da Europa Ocidental em xeque.
Essas questões são anteriores a Trump?
Sim, essas duas grandes reconfigurações já estavam aí. A crise da COVID-19 demonstrou uma certa fragilidade dessas cadeias internacionais de valor. Por outro lado, há essa ameaça que a China pode eventualmente oferecer em relação a Taiwan. Há um processo de reconfiguração do comércio internacional em função dessas duas ‘ameaças’: da China, do ponto de vista americano, e da Rússia, do ponto de vista da Europa Ocidental. Trump vem, em certa medida, tornar mais agudo esse processo.
O embaixador Rubens Barbosa acha que o Brasil errou ao não estabelecer um canal de comunicação com Trump. Como o senhor vê essa questão, a relação entre os dois países e as perspectivas?
Olha, concordo apenas em parte porque, para Trump, Bolsonaro é uma espécie de alter ego. Ele está vendo acontecer com Bolsonaro o que poderia ter acontecido com ele. Há uma identificação muito grande. Não acho que Trump esteja usando Bolsonaro como desculpa para fazer outras coisas.
Por que não?
As outras reclamações dos Estados Unidos com relação à política comercial do Brasil foram objeto de outra carta, que fala de infrações investigadas com base na Seção 301 da Lei de Comércio dos EUA. Está listado ali todo o contencioso comercial propriamente dito. Eu até pensei se não daria para esquecer a carta e focar no contencioso, o que, acho, era a grande esperança do Itamaraty.
Como o senhor explicou, estamos entrando numa era de incertezas porque os Estados Unidos estão alterando os legados que construíram: previsibilidade política e expansão do comércio. Quais são os riscos para a economia internacional sem a mediação da OMC e a liderança dos EUA, e com o encarecimento das importações?
A gente não consegue responder a essa pergunta se não souber o que vai acontecer em 2028. Temos que começar a analisar as coisas a partir do ‘fim’. Teremos uma previsão no ano que vem, com as eleições para o Congresso americano. Esta é a grande batalha agora: o recálculo do número de distritos eleitorais no Texas. Isso pode favorecer a manutenção da liderança de Trump na Câmara. O processo está se generalizando, pois os estados ‘azuis’ [Democratas] disseram ‘já que é assim, vamos recalcular aqui também’. As assembleias locais têm independência para fazer isso, mas, eventualmente, a Suprema Corte terá que se pronunciar, porque isso é mais um golpe nos fundamentos da democracia americana.
O que está motivando todas essas transformações nos EUA?
Tem cinco pontos. O primeiro é que os Estados Unidos, através da OTAN e de outros acordos, incorrem em um custo elevado para prover proteção militar a seus aliados. A outra questão é a ajuda internacional a países pobres. O terceiro ponto é o comércio.
Em que medida?
Algo como: ‘nós estamos importando demais e vocês, parceiros comerciais, não estão deixando a gente exportar para compensar’.
Isso é um fato?
Isso é um fato. No comércio internacional, os EUA têm um déficit permanente com o mundo. Somando bens e serviços, é mais de 3% do PIB [segundo dados oficiais, US$ 922,2 bilhões em 2024, o equivalente a 3,16% do PIB].
Por que isso não era uma preocupação antes?
Se você olhar historicamente, de 1950 até 1997, o déficit era menor que 1% do PIB. A partir de 2000, ele aumenta bastante e coincide com a ascensão econômica da China. A China não existia antes no mercado internacional. As duas coisas – a China e o déficit comercial americano – estão associadas.
Era o custo do projeto político?
Era o projeto político de achar que, com a abertura para a China e sua entrada na OMC em 2001, ia ficar tudo bem.
Bem como?
A China ia se democratizar… Esse era o projeto: que o comércio ia gerar democracia. E não gerou. Gerou uma ditadura que, então, se fortaleceu.
E como o déficit saltou de 1% para mais de 3% do PIB?
Há a questão de que ângulo você olha o déficit. Os governos democratas nunca se preocuparam muito com isso; a preocupação era com a desindustrialização, que é a contrapartida. Os economistas falam: ‘isso [o déficit] é a contrapartida do dólar forte’. O que você quer? Déficit no comércio ou dólar forte? Não pode querer os dois, mas o Trump quer os dois. É o problema das contradições do “trumpeconomics”. Trump quer objetivos econômicos que são incompatíveis. Ele lembra muito a Dilma.
O senhor mencionou três de cinco aspectos. Quais são os outros dois?
A desindustrialização e, finalmente, a imigração.
Olhando para o Brasil, que manteve a economia fechada: com a possível retração do comércio, agora é que não vai mesmo se abrir, certo?
A questão é interessante, porque você vê que os outros países não estão reagindo ao Trump com protecionismo. Não está havendo reciprocidade. A China, única que aplicou, não restringiu a importação de produtos americanos, mas a exploração de terras raras. Portanto, está negando acesso dos EUA a algo que eles precisam. Não há uma reação do resto do mundo como houve na década de 1930, quando os países se fecharam uns aos outros.
E por que não há reciprocidade desta vez?
Acho que há uma certa consciência de que colocar tarifa é dar um tiro no pé. Exceto para os Estados Unidos, porque, quando o país é um importador muito importante, ele pode forçar uma baixa nos preços em dólar. Quem paga a conta é o exportador. Esta é a lógica de explorar o argumento dos termos de troca para proteção. Quando você tem poder de monopólio, pode explorar esse poder. O Brasil fez isso por cem anos com a política de valorização do café.
Por que essa política só funciona no curto prazo?
Porque no médio e longo prazo, a demanda migra para outros produtos. Os americanos começaram a tomar ‘chafé’ quando o Brasil insistiu em deixar os preços nas alturas, em 1954. Os EUA inventaram o café solúvel. E a política brasileira promoveu o cultivo de café em outros países. Você restringe, tem um ganho temporário, mas no longo prazo os outros países procuram alternativas e dão uma volta nos EUA, que são apenas 13% do mercado internacional. Quem vai pagar no final é o importador americano.
É provável que algo mude?
Tem um grande complicador: tudo isso ocorre em meio a um grande boom de Inteligência Artificial. Há uma estimativa que Paul Krugman publicou: esse boom de ‘data centers’ é de tal magnitude que será responsável por metade do crescimento americano deste ano. Do ponto de vista de demanda, é um investimento que gera capacidade produtiva e avanço tecnológico. Então, enquanto a política protecionista de Trump prejudica a economia, do outro lado tem uma grande revolução tecnológica em curso.
O protecionismo pode diminuir o impacto positivo da Inteligência Artificial?
Com certeza, vai frear, mas nunca saberemos o quanto, porque não teremos o experimento natural. Se as eleições de ‘midterm’ e as eleições municipais confirmarem a vitória dos democratas, você já pode antecipar o que vai acontecer em 2028. Se ficar claro que os democratas vão ganhar, aí é outro mundo, porque eles não continuarão com essa política de guerra comercial.
No caso do Brasil, que alternativa o senhor sugere?
A alternativa é clara: buscar parceiros comerciais alternativos.
Isso pode acelerar a integração sul-americana?
Sim, e com a Europa. O Reino Unido fez acordo comercial com a Ásia. O Brasil deveria aumentar sua exposição comercial, em vez de diminuir. Isso deveria servir como um estímulo para buscar parcerias externas. A expectativa é que essa situação nos Estados Unidos não vá se manter.
Link da publicação: https://veronoticias.com/entrevistas/a-era-da-incerteza-e-o-trumpeconomics-de-inspiracao-dilmista/
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