Globo
A independência dos bancos centrais é um pilar de confiança que protege a sociedade das tentações de curto prazo
Em economia sempre houve disputas. Algumas, contudo, já pareciam superadas. O debate sobre a independência dos bancos centrais é um bom exemplo. Pós anos 2000, a sensação era de que as grandes batalhas em torno da política monetária haviam sido resolvidas. A estabilização de preços, conquistada com credibilidade institucional, parecia definitiva, e a autonomia dos bancos centrais era tratada quase como um consenso, inquestionável por quem reconhece o valor das evidências.
Mas a história, apesar de Francis Fukuyama e seu “Fim da História”, como sabemos, não terminou. Crises financeiras, pandemia, inflação e polarização recolocaram os bancos centrais no centro de disputas políticas.
Como fantasmas, voltaram à cena questionamentos à sua independência. Nos Estados Unidos, o presidente Trump começou mirando Jerome Powell, presidente do Fed e hoje quer demitir a diretora Lisa Cook ou nomear diretor um assessor com cargo na Casa Branca.
Aqui no Brasil, críticas à independência formal e a dirigentes do Banco Central ganham espaço, sem disfarçar que por trás estão a pressão por maior ingerência política nos juros e, uma péssima nova ideia, interferências na regulação e organização do sistema financeiro nacional.
A história da moeda é, em grande medida, a história das tentações. E essas dificilmente morrem. Sempre que governos tiveram em mãos o poder de emitir moeda sem freios, elas afloraram: estimular a economia às vésperas de uma eleição; aliviar tensões sociais de curto prazo ou financiar gastos além da conta.
Os resultados, sempre repetidos, foram a corrosão da confiança e o retorno de uma velha conhecida: a inflação. Hoje, outros interesses se somam ao cardápio de tentações, com impactos igualmente deletérios, ao menos para a maioria.
A independência dos bancos centrais — e, portanto, da gestão da política monetária e do funcionamento do sistema financeiro — precisa estar longe das vontades políticas de ocasião. Nas últimas décadas do século XX, economistas se debruçaram sobre o tema e mostraram que a política monetária sujeita a pressões políticas tende a produzir um “viés inflacionário”.
A resposta institucional veio em forma de independência — que equivale a dizer que o guardião da moeda deve ter liberdade técnica para agir, protegido das urgências do calendário e dos interesses políticos.
Estudos empíricos, como o célebre trabalho de Alesina e Summers nos anos 1990, confirmaram o que a teoria sugere: países com bancos centrais independentes apresentam inflações mais baixas e estáveis, com menor custo pelo lado do crescimento. Menor incerteza, crédito mais barato e melhores condições para o investimento são os canais que ligam bancos centrais independentes a mais desenvolvimento econômico.
No Brasil, a lição foi especialmente dolorosa. Depois de décadas de hiperinflação, foi o Plano Real, em 1994, que trouxe estabilidade. A consolidação veio com um Banco Central autônomo e marcos importantes desse processo. Nas ações de regulação e supervisão do sistema financeiro, a resolução da crise bancária em meados dos anos 90 é um deles.
No campo monetário, a adoção do regime de metas de inflação em 1999 é outro. A independência formal veio só em 2021, nos inserindo, ainda que tardiamente, no movimento global dos anos 1980 e 1990, quando o Fed (EUA), o Banco da Inglaterra e o Banco Central Europeu consolidaram sua independência institucional.
O processo não foi sempre linear. Tampouco foi desprovido de desafios. Mas há que se reconhecer e celebrar os resultados sociais (além dos econômicos) da solidez institucional do Banco Central brasileiro, e que o tornaram referência global. É isso que está em jogo.
Os tempos atuais mostram que essa solidez não é um ponto final, mas uma conquista sempre em disputa. Assim como Fukuyama foi desmentido pela resiliência dos conflitos geopolíticos, o Brasil, com a ameaça pairante à independência formal, ou os Estados Unidos, com suas disputas em torno do Fed, oferecem uma lição poderosa.
Instituições só permanecem sólidas se forem defendidas todos os dias. A independência dos bancos centrais é um pilar de confiança que protege a sociedade das tentações de curto prazo. Ceder a esse retrocesso equivale a ferir de morte avanços que acreditávamos consolidados.
Link da publicação: https://oglobo.globo.com/economia/ana-carla-abrao/coluna/2025/09/independencia-ou-morte.ghtml
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