Roberto Campos Neto
Folha
Quem não é economista e acompanha as notícias pode ficar confuso diante da enxurrada de termos sobre a guerra tarifária internacional. Aqui pretendo simplificar a discussão e apontar oportunidades para o Brasil.
O comércio global já vinha encolhendo antes da pandemia —de 60% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2011 para 56% em 2019, segundo o Banco Mundial. Nos últimos anos, o crescimento do comércio de bens se estabilizou, enquanto o comercio de serviços vem avançando significativamente, embora seja mais difícil mensurar essa parcela. Nos EUA, o superávit de serviços com o resto do mundo se aproxima de US$ 350 bilhões.
Nesse mesmo período, cresceu também o debate sobre reorganização das cadeias globais, com termos como nearshoring e friendshoring, que significam priorizar negócios com vizinhos e parceiros alinhados. Infelizmente, mais recentemente, assistimos ao avanço do chamado inshoring, que se manifesta nos movimentos de protecionismo e subsídios para a produção local.
Com a mudança de governo nos EUA, nunca se falou tanto sobre tarifas comerciais. Os economistas acompanham de perto essa novela infindável e tentam encontrar uma lógica em meio à poeira.
Vale então retomar as três razões primárias para a criação de tarifas no comércio internacional. A literatura sobre o tema pode ser resumida nos chamados “três Rs”: restrição, receita e reciprocidade.
Comecemos com o primeiro deles, restrição. Nesse caso, tarifas buscam proteger o mercado local ou uma indústria nascente. O histórico desse tipo de política é nebuloso: em grande parte das vezes gerou ineficiência e baixa produtividade, resultando em bens inferiores e consumidores insatisfeitos. Há vasta literatura sobre o fracasso de programas dessa natureza em países como Brasil, Turquia, Malásia e vários outros. A Lei da Informática e a Lei do Conteúdo Nacional são exemplos clássicos. Infelizmente, em nosso país parte do espectro político ainda acredita em uma reinvenção da teoria de vantagens comparativas e na recriação da fronteira eficiente de produção.
Passemos ao segundo R, receita. Trata-se da elevação de tarifa para aumentar a arrecadação, seja para financiar projetos estruturantes, seja para despesas correntes. O histórico revela uma contradição evidente: se a tarifa é efetiva, ela eventualmente diminui as importações e reduz a arrecadação daí decorrente. Exemplos incluem as tarifas sobre o aço impostas por George W. Bush em 2002, as tarifas da Argentina nos anos 2000 e as aplicadas pela Índia nos anos 1990. Além disso, em geral, as receitas vão para gastos correntes e raramente para investimentos que ampliem a oferta. Como no primeiro caso, o resultado é perda de produtividade e afastamento da economia da fronteira de eficiência. Se trata de uma criação de dinossauros domésticos. Nossa história é repleta deles e convivemos com seus esqueletos até hoje.
A terceira razão é a reciprocidade, baseada na ideia de que igualar tarifas entre países promoveria equilíbrio. Mas essa suposição contém uma falácia: estudos mostram que retaliar com tarifas equivalentes não leva à eficiência. A melhor reação a barreiras elevadas nem sempre é replicá-las. É verdade, no entanto, que quando tarifas são simétricas, aplicadas a bens semelhantes e com valor adicionado equivalente, negociações para redução mútua trazem ganhos claros para ambos os lados. O inverso também vale: se partimos de tarifas igualmente baixas em dois países e as elevamos igualmente, o resultado é um prejuízo mútuo.
Com esse quadro, tentemos entender o que está ocorrendo nas atuais discussões sobre tarifas impostas pelos EUA e refletir sobre o Brasil.
Os EUA iniciaram o debate alegando que as tarifas eram demasiadamente assimétricas contra o Tio Sam e que se buscaria a reciprocidade. Economistas liberais se animaram, vendo nisso um passo intermediário rumo à queda de tarifas e benefícios mútuos. Mas logo surgiram anúncios desencontrados, sem clareza de objetivos ou plano de longo prazo. Essa incerteza elevou o prêmio de risco para investimentos. Mais recentemente, os argumentos se voltaram ao objetivo de arrecadação: fala-se entre US$ 300 e US$ 500 bilhões apenas em 2025.
Felizmente, mesmo sem compreender por completo a estratégia americana, o Brasil pode adotar uma estratégia vencedora —com objetivos claros e verificáveis.
O Brasil é historicamente fechado e cultivou a cultura dos dinossauros domésticos. Nossa tarifa média gira em mais de 11%, enquanto parceiros da América Latina estão próximos de 7% e os asiáticos em torno de 4%, segundo relatório anual conjunto da OMC (Organização Mundial do Comércio), ITC (Comissão Internacional de Comércio) e UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). Nossa trajetória, salvo breve exceção nos anos 1990, foi marcada por aumentos de tarifas sob o pretexto de proteger a indústria nacional (o primeiro R). Se não fossem alguns espasmos de bom senso, talvez ainda estivéssemos celebrando o nosso fusca nacional.
Deveria estar claro à essa altura que a estratégia das últimas décadas foi equivocada. Quanto mais protegido o setor, mais ineficiente ele se tornou. Nossa produtividade ficou bem abaixo à de nossos pares, e estamos atrasados na curva da inovação tecnológica.
Estamos, portanto, diante de uma oportunidade única. Precisamos iniciar um movimento de abertura da economia brasileira e de redução tarifária, com o objetivo imediato de ao menos alcançar a reciprocidade com nossos pares do mundo emergente. Um estudo recente do CDPP (Centro de Debate de Políticas Públicas) mostra caminhos concretos para abandonar a cultura do dinossauro e ingressar, enfim, na trilha da prosperidade.
Espera-se que o Brasil compreenda os benefícios da abertura comercial e não desperdice mais essa oportunidade. Em vez de manter a cultura atrasada de criticar o uso do dólar sem entender como os pagamentos digitais estão transformando o comércio internacional, temos, na América Latina, uma oportunidade de liderar um movimento de abertura multilateral, em sintonia com uma guinada liberal na região. O Brasil tem todos os ingredientes para ser o condutor deste movimento.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/roberto-campos-neto/2025/09/os-tres-rs-e-a-grande-oportunidade-para-o-brasil.shtml
As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.