O crime organizado é um dos problemas mais urgentes a ser enfrentado no país e precisa estar no centro das discussões sobre nosso futuro. Como a corrupção, sua cara metade, é um problema complexo, multifacetado e em rápida expansão pelo mundo. Mina o organismo econômico, social, e político do país, tornando-o hostil a investimentos e ao progresso.
Seu enfrentamento exige três pilares simultâneos: leis apropriadas que aumentem o custo do crime e reduzam a impunidade, baseadas no que há de melhor na experiência internacional e doméstica; oferta eficaz de serviços públicos à população, como segurança, educação, saúde, infraestrutura, tirando dos criminosos a vantagem de “substituir o estado” em troca de subserviência dos cidadãos; e participação ativa da sociedade civil liderando as propostas que enfrentem resistência por parte dos que se beneficiam da criminalidade, hoje encastelados nos três Poderes e em vários setores da economia. Por ser um imenso problema global, exige, adicionalmente, estreita cooperação entre os países e regras globais visando a troca de informações e o rastreamento de dinheiro oriundo do crime.
Descrevo, a seguir, as linhas gerais da grave situação atual do crime organizado na América Latina e no Brasil. Em busca de soluções, aparecem em primeiro plano as notáveis medidas adotadas na Itália nos últimos 40 anos visando o enfrentamento das máfias locais. A inovadora distinção entre “associação criminosa” e “associação mafiosa” permitiu a construção de um novo aparato legal que levou à prisão, pela primeira vez, os chefões da máfia siciliana no Maxiprocesso (1986-1992). Com atualizações constantes, tornou temidas a polícia e a justiça italianas pelos criminosos mundiais. O importante e eficaz marco legal da lei antimáfia merece ser estudado e aplicado entre nós, que temos a legislação calcada no Direito italiano.
O CRIME ORGANIZADO NO MUNDO E NA AMÉRICA LATINA – Antes dependente de transações feitas em dinheiro físico, com elevado custo e risco de transações, o crime organizado guardava dinheiro em cofres ou, no máximo, buscava segurança em paraísos fiscais. Nos últimos anos, a disseminação de cripto moedas e demais métodos eletrônicos de comunicação e de pagamentos internacionais não rastreáveis reduziu drasticamente o risco das operações. Ao contrário do que ocorria com os antigos telefones, facilmente grampeados pela polícia, as ligações e mensagens trocadas via WhatsApp e outros aplicativos de mensagens são criptografadas nas duas pontas, impedindo as investigações. Conteúdos que frequentemente vêm a público têm origem em aparelhos apreendidos. A dark web também garante comunicações criminosas pouco acessíveis às investigações. Tais facilidades levaram à crescente cooperação e sinergia entre os grupos criminosos no mundo, proporcionando-lhes ganhos de eficiência e superação de desafios logísticos com a “terceirização” do transporte de drogas até os locais de consumo. Governos fracos, capturados pelo crime, tornam a corrupção e a impunidade endêmicas, fazendo da América Latina o grande celeiro de cultivo produção de drogas. Tornam-se, assim, parceiros ideais para a “terceirização” dos riscos enfrentados por grupos mais experientes e capitalizados que operam na Europa e Ásia[2].
Em seu Relatório Econômico sobre a América Latina e Caribe (ALC) de abril[3], o Banco Mundial dedicou um capítulo à análise do crime organizado e violência na região. Os dados apresentados justificam o crescimento do medo e do desamparo sentidos pelos cidadãos, bem como o status de prioridade máxima adquirido pelo combate ao crime organizado em virtude dos custos crescentes que provoca, impedindo o desenvolvimento sustentado dos países.
Além da insegurança dos cidadãos, vítimas de todo tipo de violência, o crime organizado aumenta a incerteza sobre os direitos de propriedade e os custos das transações pela prática da extorsão; afugenta investimentos; deteriora a qualidade da política, do funcionamento dos governos e da oferta de serviços públicos. Ignora fronteiras, tornando-se transnacional, comanda regiões exercendo atividades ilegais como tráfico de drogas, armas, pessoas e animais; desmatamentos; extração de minérios, entre outros.
A violência do crime organizado na ALC é maior do que em qualquer outra região do mundo: com 9% da população global, registra um terço de todos os homicídios. As taxas são maiores do que em países com nível de renda per capita semelhante, e têm crescido nos últimos anos. Em 2023, 12 países da ALC estavam entre os 50 primeiros listados no Índice de Criminalidade da Iniciativa Global Contra o Crime Organizado (GI-TOC), que mostra, também, o domínio da região no comércio mundial de cocaína, com 17 países aparecendo entre os 20 primeiros.
A preocupação com a disseminação e o aumento do poder do crime organizado latino-americano ultrapassa o Atlântico, e está no centro das preocupações na Europa. Livro italiano recente sobre o assunto inicia o primeiro parágrafo dizendo: “O risco não é o de se ver a máfia em todos os lugares, mas de simplesmente não a ver. Hoje, causam preocupação não só as máfias italianas, … mas também o Primeiro Comando da Capital brasileiro (PCC); o Cártel de Jalisco Nueva Generación mexicano (CJNG); os Triadi chineses, cada vez mais favoráveis ao governo; as gangs albanesas, que assumiram o controle até de praças em Londres; a Moco Maffia de origem magrebina que da Holanda se expandiu para a Bélgica; e os grupos criminosos russos, georgianos, bascos, ucranianos, sérvios, bósnios, turcos, búlgaros, armênios, que junto com hackers romenos e norte coreanos representam uma ameaça global para a segurança informática e a estabilidade geopolítica. Há traficantes de drogas brasileiros, colombianos, mexicanos que estão diversificando suas estratégias, explorando novos mercados…”[4].
VIOLÊNCIA E CRIME ORGANIZADO NO BRASIL – Com 3% da população mundial o Brasil responde por 10% das mortes violentas no mundo[5], o que o coloca em 18º lugar no ranking de violência entre 119 países. Apesar da redução observada a partir de 2018, o número de mortes violentas ainda é de 23 por 100 mil habitantes, enquanto a média mundial é de 5,8. Embora o crime organizado não responda pela totalidade dessa tragédia, é responsável por parte significativa.
O Nordeste e o Norte são os locais mais violentos, com índices 60% e 49% superior à média nacional, respectivamente. Estudo do Insper mostra que o volume de assassinatos na Amazônia está ligado ao tráfico de drogas feito pelos rios da região; a taxa de homicídios mais que dobrou em duas décadas, passando de 13,6 para 24,6 por 100 mil habitantes entre 2004 e 2014.
Segundo o Ministério da Justiça, operam no país 88 organizações criminosas[6]. As duas mais importantes e organizadas são o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC)[7]. O CV foi criado na década de 1970 em sistemas prisionais, por ladrões especializados em assaltos a bancos. Migrou para o narcotráfico na década de 1980, vendendo drogas sobretudo no Rio de Janeiro, onde os morros começaram a ter como seus “donos” representantes do grupo criminoso. Opera através de uma estrutura organizacional flexível, estando presente nos estados sob espécies de “franquias”. Seria formado por 30 mil membros e, além das drogas, costuma controlar serviços como transporte, TV e internet, gás e água, multiplicando os preços cobrados aos moradores.
Já o PCC nasceu dentro de presídios no estado de São Paulo há mais de três décadas. Tornou-se conhecido por organizar um motim que, a partir da Casa de Custódia de Taubaté, se espalhou por vários presídios em agosto de 1993, chegando a manter mais de 5 mil reféns. Organizou-se e expandiu-se pelo país; tem estrutura organizada, hierarquizada e rígida, marcada por cargos e funções específicos. As estimativas de seu tamanho variam entre 40 mil e 110 mil membros, estando presente em 28 países, e seu faturamento anual seria de US$ 1 bilhão.
Domina as fronteiras e portos brasileiros, como o de Santos, por onde passam mais de 10 mil containers por dia, para viabilizar o tráfico de drogas, sobretudo cocaína e drogas sintéticas. Atua tanto em áreas remotas, como a Região Amazônica, quanto em grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo. A reciclagem do dinheiro ganho se dá através da economia formal, geralmente em setores que fazem uso de dinheiro vivo, que empregam mão de obra irregular, e/ou têm estruturas societárias opacas. Sua presença é reconhecida em pelo menos 13 setores: combustíveis, agências de carros, imóveis, construção civil, transporte público, casas de câmbio, finanças, cripto moedas, empresas de apostas e jogos de azar, atividades ligadas ao futebol, mineração, ONG’s, igrejas[8].
O PCC selou parceria com uma das três máfias mais poderosas da Itália, a ‘Ndrangheta, entrando pela porta da frente no tráfico internacional de cocaína, o que gerou um salto em seus ganhos financeiros[9]. Com isso, mudou o patamar e a escala de sua atuação, preenchendo os requisitos para conceitualmente, segundo a legislação antimáfia italiana, deixar de ser apenas uma “organização criminosa” para tornar-se uma “associação mafiosa”.
MÁFIAS, ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E ASSOCIAÇÃO MAFIOSA – A Itália enfrenta a criminalidade organizada e as máfias desde o século XVIII[10]. O principal traço comum às três máfias históricas italianas – Cosa Nostra siciliana, Camorra napolitana e ‘Ndranghetta calabresa[11] – é seu surgimento em territórios onde as leis eram ignoradas ou inexistentes, ocupando os espaços vazios deixados pelo Estado. Já em 1877, Leopoldo Franchetti ligava o fenômeno mafioso à ausência de um monopólio estatal da violência, definindo a máfia como “a indústria da violência”.
Acemoglu, De Feo e De Luca mostraram, em 2017[12], que a grande escalada da máfia siciliana ocorreu durante a forte seca de 1893, em resposta à ação de camponeses libertários e socialistas (Fasci Siciliani dei Lavoratori), que exigiam distribuição de terras; menores impostos para produtos básicos; maiores salários; etc. Diante de um Estado fraco, incapaz de lidar com os efeitos da calamidade, e das ameaças dos Fasci, proprietários e administradores de terras buscaram proteção junto a valentões acostumados a usar a força para impor sua vontade, e assim o crime organizado teria florescido e lá se enraizado.
Os autores encontram, também, efeitos negativos substanciais na alfabetização e em vários outros serviços públicos nas décadas de 1910 e 1920, atestando a persistência da piora na qualidade dos serviços prestados à população em decorrência da captura do Estado pela máfia, além do forte impacto da organização criminosa na competição política. O atraso no desenvolvimento econômico e social resultante é dramático e perdura até hoje: enquanto o PIB per capita da Itália atingia € 30 mil em 2022, o da Sicília era de apenas €18 mil (e o da Calabria, berço da ‘Ndrangheta, €17 mil)[13]. Tal quadro reflete o círculo vicioso que se instala: a máfia se beneficia da ausência do Estado e, ao se disseminar, o enfraquece, piorando a qualidade dos serviços públicos.
Embora as máfias como atividades criminosas venham sendo estudadas na Itália desde o século XVIII, as principais alterações introduzidas no Direito começam a aparecer na década de 1920. No entanto, a proliferação e a crescente gravidade dos crimes praticados pelas organizações criminosas explicitaram a incapacidade de puni-los através de processos penais lentos e ineficazes. Surge, assim, uma inovação institucional corajosa e eficiente: a introdução do conceito de “associação do tipo mafioso”, em setembro de 1982, através da inclusão do artigo 416-bis no Código Penal[14] italiano.
A associação mafiosa é qualificada tanto pelos seus métodos como por suas finalidades. O método mafioso determina os seguintes elementos como sendo necessários para a configuração do crime mafioso: a) a força de intimidação do vínculo associativo, ou seja, a capacidade de incutir temor e subserviência para a execução de atos violentos ou ameaças; b) a condição de submissão de seus membros ao comando dos líderes; e c) a condição de omertà, que vai além da submissão, incluindo a proibição de colaborar com órgãos investigativos e judiciais do estado.
O medo de retaliação – a morte – é ameaça permanente. A ruptura desse pacto consiste no fenômeno do “pentitismo” – os “arrependidos” que colaboram com a justiça. O primeiro e mais famosos deles foi o mafioso Tommaso Buscetta, cujo depoimento a Giovanni Falcone permitiu a descoberta do nome da máfia siciliana – Cosa Nostra –, e o funcionamento da organização, como a obrigatoriedade do juramento e de complexos rituais de filiação. Ao escancarar as entranhas do organismo mafioso foram abertas várias portas para o Maxiprocesso ocorrido entre 1986 e 1992, julgando e condenando pela primeira vez crimes mafiosos no país[15].
Já as finalidades mafiosas englobam: a) cometer delitos; b) adquirir a gestão de atividades econômicas, de concessões, de autorizações e concorrências do serviço público; c) impedir ou obstaculizar o livre exercício do voto ou de procurar votos a si ou a protegidos em eleições; d) obter lucros ou vantagens ilegais para si ou para outros.
O Artigo 41-bis da Lei 26 julho 1975 já disciplinava o carcere duro, prisão de segurança máxima com isolamento, restrição severa a visitas, de maneia a impedir a comunicação entre os detentos do grupo criminoso. A legislação foi sendo sucessivamente aprimorada, sobretudo após as mortes de Giovanni Falcone e Paolo Borsellino em 1992, podendo o carcere duro ser aplicado a detentos condenados em definitivo, ou a acusados em prisão cautelar. De extrema importância é a possibilidade do confisco preventivo do patrimônio relativo ao crime, seja dinheiro, empresas ou outros bens, dando prazo para o imputado provar sua origem, invertendo o ônus da prova.
Outras finalidades das associações mafiosas são: monopólio na gestão e controle de atividade econômica, impedindo a concorrência; objetivo político-eleitoral; intuito de obtenção de vantagem ilícitas; delito de corrupção eleitoral; controle de concessões, autorizações, leilões e serviços públicos e afins.
Várias extensões foram incluídas nos mais de 40 anos de vigência do artigo 416-bis, resultando na consolidação dos vários dispositivos legais no Codice antimafia de 2009[16] e 2011, e em atualizações posteriores. Uma das inovações mais relevantes foi a criação da “Direzione Investigativa Antimafia” (DIA), em dezembro de 1991. A DIA tem por objetivo enfrentar os crimes mafiosos no âmbito nacional, atuando de maneira preventiva e repressiva, identificando e desmantelando as organizações mafiosas.
Foi, assim, criada uma legislação especial, uma espécie de trilho paralelo ao aparato legal tradicional visando facilitar e acelerar inquéritos e ritos judiciais contra membros das máfias. As penas são maiores que as previstas para crimes comuns, com previsão de prisão perpétua para os líderes mafiosos; dispõe novas regras para o carcere duro sobre regimes penitenciários especiais; regulamenta as colaborações premiadas; introduz a figura de confisco preventivo de bens mafiosos. Dentre os agravantes do delito de associação mafiosa, que podem aumentar as penas previstas estão: a disponibilidade de armas e explosivos; a prática de reciclagem de dinheiro para esconder ou mascarar a origem delituosa de um bem; o crime transnacional; entre outros.
O sistema mafioso evolui continuamente, exigindo adaptação das leis e práticas para combatê-lo. No lugar dos assassinatos espetaculares do passado – os excelet cadevers[17], seus membros hoje estudam em boas universidades, frequentam hotéis e restaurantes estrelados, e se mimetizam no sistema econômico formal ao lavar o dinheiro sujo em atividades lícitas. Diante da gravidade dos custos que acarretam, tal sistema paralelo de regras e de poder precisa ser enfrentado pari passu, com inovações institucionais corajosas e eficazes.
CONCLUSÃO – É imperiosa a necessidade de reação eficaz do país ao crime organizado e à nossa “organização mafiosa”, o PCC. É complexa e preocupante a interconexão cada vez mais estreita entre as máfias e o poder político e econômico dos países onde atuam. Amparado pelos defensores do “garantismo”, que enfrenta modernas guerras de drones, redes de dark web e de criptomoedas com artilharia do Século das Luzes, o crime organizado se espalha pelo mundo em velocidade atordoante. Como lembra Ignazio Visco, presidente da Banca d’Italia, entre 2011 e 2013, “O impacto econômico mais importante da criminalidade não consiste tanto no valor produzido através das organizações criminosas, mas nos efeitos que persistem no longo prazo, naquilo que deixa de ser produzido por causa das distorções geradas pela difusão da criminalidade.”[18] Dada a longa história de corrupção e de impunidade, não surpreende a proliferação do crime organizado no Brasil. Se não for contido, o país rapidamente garantirá sua entrada no clube dos narcoestados.
Alguns avanços importantes ocorreram nos últimos anos, como o novo regramento dos presídios federais de segurança máxima, levado a cabo em 2019 através da iniciativa do então Ministro da Justiça Sergio Moro. Com regras semelhantes às dos carcere duro, todas as visitas são monitoradas e só ocorrem em parlatórios com agentes presentes. Desde então ocorreram apenas duas fugas de presos, que foram recapturados.
Também foi introduzida no Código Penal[19] a possibilidade do confisco alargado de bens, abrangendo todo o patrimônio de condenados com pena máxima superior a seis anos, que for incompatível com os rendimentos lícitos comprovados, cabendo ao afetado demonstrar o contrário. O elo fraco tem sido a aplicação prática de tal dispositivo, a cargo dos juízes, que podem sofrer represálias.
Apesar das bem-vindas alterações, a expansão do crime organizado atesta a necessidade de uma abordagem sistêmica. As principais lições a serem extraídas da experiência italiana podem ser resumidas na sugestão de criação de uma lei antimáfia, um trilho específico no arcabouço jurídico que traga eficiência e agilidade nas investigações e julgamentos. Dentre as características citadas acima, devem estar: a tipificação de organizações mafiosas; a criação de um organismo nacional de combate ao crime mafioso, centralizando órgãos e investigações de todo o país, como PF, Coaf, Receita Federal, recriando as Forças-Tarefa desidratadas após a Lava Jato; ritos processuais rápidos e eficientes; penas maiores para líderes mafiosos e contínuo aprimoramento das prisões de segurança máxima; tornar mais eficaz o bloqueio e confisco preventivo de bens de pessoas ou empresas, invertendo o ônus da prova; desmontagem de esquemas de lavagens de dinheiro com maior supervisão sobre fintechs; cooperação internacional visando o combate às máfias e suas ações; etc.
Como o crime organizado está infiltrado no sistema econômico e político, a participação da sociedade civil é imprescindível para levar adiante a agenda de modernização institucional na prevenção e combate aos crimes violentos e mafiosos. Deve ser um projeto da sociedade e não do governo A, B ou C.
Paralelamente, é indispensável aumentar a eficiência do gasto público, visando o fornecimento dos serviços públicos básicos para os quais são arrecadados os impostos dos cidadãos. Sem segurança pública, saúde, educação, infraestrutura o povo se vê entregue a grupos criminosos para supri-los. Políticas econômicas visando destravar os gargalos que têm nos condenado ao baixo crescimento precisam voltar a ser objeto de planos consistentes e não de programas eleitoreiros que distribuem uma riqueza que não existe, sacando da conta das gerações futuras através do elevado endividamento público.
A Lava Jato desnudou parte da realidade de corrupção presente na administração pública do país, ali enraizada há muitos anos. Um amplo acordo político, envolvendo expoentes dos três Poderes, “estancou a sangria”, como exigia Romero Jucá em conversa gravada com o ex-presidente da Transpetro em janeiro de 2017. Feito o acordo, acabou com a Lava Jato com base em firulas e alterações sob medida de leis que permitiram ao STF anular condenações, algumas já transitadas por duas ou três instâncias, como uma das de Lula, assim como o acordo de leniência com a Odebrecht e todos os demais atos. Esta é a prova cabal de que o aparato legal brasileiro não está preparado para punir crimes de corrupção, e conta com a colaboração explícita dos três Poderes para preservar e ampliar a impunidade dos criminosos. Que esse triste exemplo sirva de alerta para que a situação não se repita com o enfrentamento do crime organizado e organizações mafiosas.
Aplica-se a nós o alerta que Gratteri e Nicaso fazem para a Itália: “A força das máfias é diretamente proporcional à fraqueza da política. Precisamos não só de políticos honestos, mas também preparados. Muita gente em funções inadequadas só tem gerado danos com reformas inúteis e estratégias discutíveis.” Só com o esforço contínuo de cada um de nós haverá alguma esperança de um futuro melhor.
São Paulo, 25 de agosto de 2025
Post scriptum
No dia 28 de agosto três operações foram deflagradas pelo Ministério Público de São Paulo, através do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), em conjunto a Receita Federal e a Polícia Federal. Forma elas a Operação Carbono Oculto, a Operação Tank e a Quasar. O objetivo foi desmantelar esquemas de fraudes do PCC em 10 Estados, em toda a cadeia produtiva do setor de combustíveis, e de lavagem de dinheiro por empresas do mercado financeiro. As investigações apontam que entre 2020 e 2024 cerca de R$ 52 bilhões tenham sido movimentados ilicitamente em mais de mil postos de combustíveis. Foram bloqueados bens e valores dos envolvidos superiores a R$ 1 bilhão.
Brechas regulatórias permitiram que fundos de investimentos e fintechs participassem ativamente do esquema. A dimensão da Operação e os valores envolvidos atestam a gravidade da situação imposta pelo crime organizado ao país. É preciso encarar com seriedade o desafio, sob pena de perdermos o controle da situação.
BOX – MAXIPROCESSO – 1986-1992
O Maxiprocesso nasceu após a guerra entre duas máfias sicilianas: a facção dos corleonesi, cujos chefes eram Salvatore Riina e Bernardo Provenzano, e a comandada por Stefano Bontade, Salvatore Inzerillo e Gaetano Badalamenti (da qual fazia parte Tommaso Buscetta, à época foragido no Brasil). A disputa por território, entre 1981 e 1984, resultou em aproximadamente 600 homicídios; venceu a facção dos corleonesi.
O Maxiprocesso da máfia siciliana (o maior processo do mundo) foi fruto do trabalho do pool antimáfia, com investigações de crimes de homicídios, tráfico de drogas, extorsão, associação mafiosa, sequestro, entre outros.
O julgamento começou em 10 de fevereiro de 1986 e terminou em 30 de janeiro de 1992, sendo que a etapa do primeiro grau terminou em 16 de dezembro de 1987. Quase todas as penas foram confirmadas pela Corte de Cassazione. Ocorreu em um bunker de segurança máxima a prova de mísseis, especialmente construído em 6 meses para o julgamento, ao lado do presídio Ucciardone, em Palermo. Havia 456 acusados, 200 advogados de defesa, réus com várias acusações, 600 jornalistas do mundo todo. Dentre os réus estavam chefões da máfia (Luciano Liggio, Pippo Calò, etc). As sentenças foram proferidas depois de 349 audiências e 1.314 interrogatórios. Oito membros da Corte se reuniram por 35 dias, totalmente isolados, e prolataram a sentença do Maxiprocesso de primeiro grau: 346 condenados, 114 absolvidos, 19 prisões perpétuas, com penas detentivas somadas de 2.665 anos.
A denúncia, trabalho hercúleo do magistrado Giovanni Falcone, tinha mais de 8 mil páginas, incluindo o depoimento de vários pentiti. Houve forte apoio social, incluindo estudantes universitários e jesuítas, colocando a igreja finalmente contra a máfia Cosa Nostra. Havia audiências todos os dias, exceto domingos e alguns sábados. O prazo para as prisões cautelares, dado pelo Código Penal de 1930, era muito curto. Várias armadilhas foram superadas, como a do pedido dos advogados para que todas as denúncias fossem lidas na íntegra e individualmente (o que demoraria mais de 2 anos). O processo todo demorou pouco menos de 2 anos, mas não foi além do “terceiro nível” da máfia, deixando de fora os políticos que a apoiavam e sustentavam. Pouco depois do julgamento Falcone foi sendo posto de lado, aceitou o cargo de Diretor da Divisão Criminal do Ministério da Justiça, em Roma. Foi assassinado pela máfia em 23 de maio de 1992, e menos de dois meses depois, em 19 de julho, seu colega, Paolo Borsellino teve o mesmo fim. Tais assassinatos chocaram o país, e são rememoradas anualmente. Outros processos têm ocorrido desde então, como o Maxiprocesso Bis, com 80 acusados por crimes cometidos na máfia de províncias[20].
[1] Agradeço as inestimáveis sugestões e discussões com Dr. Piercamillo Davigo, Prof. Gian Luigi Gatta, Senador Sergio Moro, Candido Bracher e Flora Pinotti Sano. As visões aqui expressas e eventuais incorreções são de minha responsabilidade.
[2] “Una Cosa sola – come le mafie si sono integrate al potere” – Nicola Gratteri e Antonio Nicaso –
Mondadori – 2024. p.57.
[3] Latin America and the Caribbean Economic Review, April 2025. https://hdl.handle.net/10986/42889.
[4] Gratteri e Nicaso, op.cit. p.9.
[5] https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/07/18/mortes-violentas-caem-mas-brasil-e-o-18o-pais-com-maior-indice-de-letalidade-do-mundo-aponta-anuario-de-seguranca.ghtml
[6] Secretaria Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, citado em artigo de O Globo, 10-08-25. https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/08/10/levantamento-do-globo-mostra-que-brasil-tem-64-faccoes-criminosas-em-atuacao-no-pais-veja-mapa.ghtml
[7] Além do PCC e do CV, que têm presença em 25 e 26 estados, respectivamente, há o Terceiro Comando Puro (RJ, em 5 estados); o Amigos do Estado (GO), o Bonde Maluco (BA), o Bala na Cara (RS), o Os Manos (RS), e o Primeiro Grupo Catarinense (SC), cada um com presença em 3 unidades da federação. O Globo, 10-08-25.
[8] Lista apresentada pelo Promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo. OESP – 03/07/25.
[9] O quilo da cocaína é comprado de outros países latino-americanos por US$ 1.200 a US$ 1.800, e vendido na Europa por €35,000 a €80,000. Gratteri e Nicaso, P.153.
[10] Há relatos de crimes sistemáticos praticados por grupos em vários lugares da Itália desde o século XVI, ver Gratteri e Nicaso, P.27 e 28.
[11] Há associações mafiosas mais recentes, que podem ser autóctones, como a Mafia Capitale; étnicas, como a Chinesa ou Coreana; e algumas itinerantes.
[12] “Weak States: Causes and Consequences of the Sicilian Mafia” – Daron Acemoglu, Giuseppe De Feo e Giacomo De Luca – NBER – Working Paper 24115, December 2017.
[13] Istat
[14] Ver “Il Delitto Di Associazione Mafiosa” – Giuliano Turone e Fabio Basile, quarta edizione rivista e aggiornata, 2024, no qual são baseadas as descrições feitas a seguir.
[15] Ver Box sobre o Maxiprocesso.
[16] Decreto legislativo n°159/2009 e Decreto Legislativo nº 159/2011.
[17] Ver “Excelent Cadavers – The Mafia and the death of the first italian republic”, Alexander Stille, Vintage Books,1995.
[18] Inazio Visco, presidente da Banca Centrale d’Italia, in Gian Luca Trequattini, “La corruzione e la mafia: una lunga storia”, Banca D’Italia, 29 aprile 2022.
[19] O Artigo 63-F da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) foi alterada pela Lei nº 13.886/2019, e o Artigo 91 do Código Penal foi complementado pela Lei nº 13.964/2019 (a “Lei Anticrime”).
[20] Dados da it.wikipedia.org/wiki/maxiprocesso_di_Palermo – 11/06/22
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