A piora das contas externas resulta do estímulo ao consumo
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Não temos prestado a atenção devida às contas externas brasileiras, talvez até por bons motivos. Os riscos de crise de balanço de pagamentos, comuns no passado, são baixos, seja porque o real flutua com relação às demais moedas, evitando portanto episódios de sobrevalorização, que encarecem nossas exportações, seja porque o BC acumulou reservas que nos ajudam a enfrentar as intempéries.
A ausência de crises, contudo, não elimina o aspecto informativo das transações internacionais do país. O déficit externo, que ao final de 2023 alcançara 28 bilhões de dólares, equivalente a 1,3% do PIB, atingiu 75 bilhões nos doze meses encerrados em julho deste ano, ou 3,5% do PIB, patamar que não visitávamos desde o final de 2015. Nesse período, a elevação do déficit foi a maior desde 2010.
Isso resultou principalmente da piora de desempenho da balança comercial, cujo saldo encolheu de 99 bilhões de dólares para 63 bilhões. O notável no caso é que as exportações não saíram do lugar; foi o crescimento das importações o responsável pelo acontecido. Mais informativo, tal processo se originou basicamente do aumento das importações de produtos manufaturados. Por que tal padrão?
Não é possível botar a culpa no suspeito de sempre, um dólar presumivelmente muito barato. Ajustado aos preços de hoje, o dólar custava 5,38 reais na média de 2023; nos doze meses até julho, o dólar custou em média 5,76 reais, desenvolvimento que deveria elevar a competitividade da indústria nacional.
A origem do fenômeno está ligada ao esgotamento da capacidade ociosa da indústria. A utilização de capacidade, que oscilava em torno de 80% ao longo de 2023, hoje se encontra pouco abaixo de 85%, similar aos patamares observados entre 2010 e 2014, quando o déficit externo também era bem elevado, superando 90 bilhões de dólares/ano em média.
“O crescimento não é limitado por falta de demanda, mas por investimento baixo e falta de produtividade”
A política de estímulo à demanda, principalmente pelo aumento da transferência de renda a famílias (Previdência, Bolsa Família, BPC etc.), elevou o consumo mais rapidamente do que a capacidade produtiva em geral, mas da indústria em particular.
Como serviços em geral não podem ser importados, a expansão do consumo requer aumento da produção local. Já no que se refere à indústria, parcela do consumo pode ser satisfeita pelo aumento de importações, como observado, principalmente se — como é o caso no Brasil — a disponibilidade de mão de obra se reduz.
Nessas circunstâncias, esperaríamos aumento do emprego mais forte no segmento de serviços, cujo produto precisa crescer, do que na indústria, onde importações podem suprir a demanda interna. E é precisamente isso que observamos, seja em termos absolutos (cerca de quatro vezes mais postos criados no setor de serviços), seja em termos proporcionais.
Dito de outra forma, a expansão do déficit externo reflete principalmente o crescimento da demanda interna à frente da expansão da capacidade produtiva em geral e da indústria em particular. O mesmo processo que levou à aceleração da inflação também se manifesta nas contas externas.
Isso não significa que enfrentaremos uma crise do balanço de pagamentos, mas indica que o limite ao crescimento econômico não vem da falta de demanda, mas sim do baixo investimento e do inexistente aumento da produtividade.
Link da publicação: https://veja.abril.com.br/coluna/alexandre-schwartsman/o-deficit-gemeo/
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