Dificilmente o SNE terá o mesmo sucesso do SUS, pois existem diferenças importantes entre a situação da saúde e da educação no Brasil
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Várias medidas estão sendo propostas pelo governo federal na educação. Entre elas está a criação do Sistema Nacional de Educação (SNE), que buscará articular as decisões do governo federal, dos Estados e dos municípios para alcançar as metas do novo Plano Nacional de Educação, que também está sendo construído. Quais as chances do novo SNE contribuir para melhorar o aprendizado no Brasil?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o aprendizado médio dos jovens no ensino médio está estagnado há 30 anos, apesar do grande aumento de recursos aplicados na educação neste período. Vários fatores contribuem para isto. Do ponto de vista dos estudantes, o principal problema é que muitas crianças não conseguem se desenvolver adequadamente na primeira infância, pois crescem em regiões pobres, com alta criminalidade, e sem estímulos adequados dos pais ou dos cuidadores, o que prejudica seu aprendizado futuro.
Quando a criança entra na escola, a gestão do sistema escolar é muito ruim na grande maioria das redes. Os prefeitos e governadores não têm incentivos para implementar reformas que foram bem-sucedidas em outras regiões, porque estas reformas geralmente são custosas politicamente, pois têm que contrariar interesses estabelecidos. Em alguns casos é necessário enfrentar greves prolongadas, por exemplo, que deixam os pais contrariados por não terem aonde deixar seus filhos durante o dia.
Além disto, os resultados destas reformas só aparecem no longo prazo, quando os jovens se formarem no ensino médio com mais aprendizado. Assim, o retorno político deste investimento de alto custo acaba indo para os próximos prefeitos e governadores. No curto prazo, a melhora da educação não traz mais votos, pois a maioria dos pais não vê a qualidade da educação como algo importante, não consegue medir se seus filhos estão aprendendo mesmo, e não entendem que medidas são necessárias para melhorar a educação.
Além disto, são necessários pelo menos onze anos seguidos de boa gestão, desde a entrada da criança na escola, para conseguir que ela saia do sistema educacional apta para o mercado de trabalho. Neste período, sua educação é gerida por dois prefeitos diferentes (ou duas gestões do mesmo prefeito) e um governador. É muito difícil encontrar três gestores seguidos no mesmo município dispostos a enfrentar interesses para melhorar a qualidade da educação. Assim, se o prefeito não souber se o seu sucessor irá continuar na direção correta, a melhor estratégia é não gastar seu capital político com reformas educacionais.
Apesar deste contexto difícil, o governo federal tem introduzido várias medidas nos últimos anos para tentar melhorar a qualidade da educação no país. As duas mais recentes são a atualização do Plano Nacional de Educação (PNE) e a criação do Sistema Nacional de Educação (SNE). O PNE elenca uma série de objetivos e indicadores educacionais para a próxima década. Porém, estes planos nacionais costumam funcionar apenas como uma carta de boas intenções.
Isoladamente, o PNE não terá condições de melhorar a qualidade educação, como ocorreu com todos os planos anteriores, que também falharam. Como os resultados educacionais dependem das ações de milhares de gestores espalhados pelo país, que não têm incentivos para mudar o status quo, de nada adianta um novo plano de educação que não estabeleça algum tipo de pressão ou contrapartida financeira para os municípios que mais avançarem.
Já a criação do Sistema Nacional de Educação é uma tentativa de emular o Sistema Único de Saúde (SUS), que foi muito bem sucedido. O SUS organizou as responsabilidades de gestão do sistema de saúde no Brasil entre os entes federativos. Grosso modo, o governo federal fica com a parte do planejamento global, as metas e a distribuição de recursos por desempenho. Os Estados são responsáveis pela maior parte da atenção secundária, ou seja, com os hospitais públicos. E os municípios são responsáveis pela atenção primária, ou seja, com a gestão dos programas de prevenção, visitação, vacinação nas Unidades Básicas de Saúde.
Segundo a proposta aprovada na Câmara dos Deputados, o novo SNE terá uma comissão tripartite, com representantes do governo federal, Estados e municípios, que terá a função de articular a adoção de estratégias para que o país alcance as metas do Plano Nacional de Educação. Esta comissão irá estabelecer padrões mínimos de qualidade das escolas e de aprendizagem dos alunos e também definirá o custo ideal por aluno para que estes padrões sejam atingidos.
Dificilmente o SNE terá o mesmo sucesso do SUS, pois existem diferenças importantes entre a situação da saúde e da educação no Brasil. Em primeiro lugar, enquanto na saúde os tratamentos necessários para curar as doenças são conhecidos na grande maioria dos casos, na educação ainda há incertezas com relação às medidas específicas que poderiam melhorar o aprendizado. Isto facilita a ação de grupos de interesse que se apropriam de cada vez mais recursos inflando seu papel no resultado educacional dos alunos.
Por fim, boa parte do financiamento federal para os programas de atenção primária na saúde funciona com base num sistema de incentivos para que os municípios alcancem metas específicas. Por exemplo, o Ministério da Saúde acaba de lançar um novo programa de indução de boas práticas para a atenção primária composto por 15 indicadores de resultado. Na educação, por outro lado, o componente das transferências da União para os municípios, que é baseado em desempenho, nunca teve papel importante. Atualmente, este componente representa apenas cerca 0,5% do orçamento total do fundo da educação básica (Fundeb).
Assim, o SNE só irá funcionar se o comitê gestor se libertar dos interesses de curto prazo dos gestores municipais e dos grupos de interesse que pressionam o tempo todo por mais recursos sem avaliação de resultados. A lei que cria o SNE estabelece que “devido à autonomia federativa, os pactos terão caráter de orientação para Estados e municípios, exceto a adoção do padrão mínimo de qualidade do ensino na educação básica”. A única esperança é que este padrão mínimo de qualidade seja estabelecido em nível elevado, seja obrigatório para todos os municípios e que as transferências da união sejam baseadas neste padrão. Sem isto, o SNE não irá melhorar a qualidade da educação no país.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/naercio-menezes-filho/coluna/sistema-nacional-de-educacao.ghtml
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