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Como sairemos do imbróglio global de endividamento público?

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A política fiscal dos Estados Unidos entrou em uma trajetória preocupante, que lembra momentos históricos de forte endividamento. Nos anos 1930, a Grande Depressão levou a um aumento expressivo da dívida pública, e nos anos 1940, a Segunda Guerra Mundial exigiu gastos maciços que empurraram a relação dívida/PIB para patamares recordes.

Hoje, a situação é diferente em causa, mas semelhante em magnitude: a dívida federal já está em torno de 120% do PIB e o déficit, que chegou a ultrapassar 7% em meados de 2024, fechou o último ano fiscal em 5,8%. O problema é que não há perspectiva de melhora. Pelo contrário, a tendência é de déficits persistentes, em torno de 6,5% do PIB nos próximos anos, mesmo considerando a arrecadação extra com tarifas de importação.

O mercado já percebeu isso e embutiu um prêmio de risco de quase 50 pontos-base nos Treasuries de longo prazo, algo que não se via desde aqueles episódios históricos. Esse prêmio de risco é um alerta: se continuar a subir, a rolagem da dívida pode se tornar insustentável. Nesse cenário, o governo seria forçado a tomar uma atitude, seja cortando gastos, seja aumentando impostos. Mas, com as eleições de meio de mandato no horizonte no próximo ano, a disposição política para medidas impopulares é mínima. Em ano de midterms, quando está em jogo o controle da Câmara e de parte do Senado, congressistas e partidos evitam decisões duras que possam custar votos, preferindo empurrar o problema para frente. A alternativa, mais provável, é conviver com mais inflação, que funciona como um ajuste silencioso, corroendo o valor real da dívida.

Do lado das receitas, houve um alívio temporário com as tarifas de importação implementadas por Trump, que chegaram a render quase 200 bilhões de dólares em 12 meses. Mas essa fonte é instável e depende de decisões políticas e jurídicas. Já o imposto de renda corporativo caiu 14,7% no último ano. Essa queda não é sinal de enfraquecimento estrutural da economia, mas sim efeito direto do Tax Cuts and Jobs Act (TCJA), que reduziu a carga tributária sobre empresas e, portanto, diminuiu a arrecadação. Isso mostra que em vez do déficit fiscal ser uma preocupação, na prática o governo está ampliando este desequilíbrio. A política fiscal americana abriu mão de uma parte importante da base tributária, num momento onde deveria ampliá la.

Do lado das despesas, a pressão é ainda mais clara. Os gastos com Medicare cresceram 14% em um ano, a Seguridade Social avançou 8,2% e os juros da dívida já consomem quase 1 trilhão de dólares por ano, com alta de 10% em 12 meses. Mesmo sem contar os juros, o déficit primário já está em 2,6% do PIB. Ou seja, o problema não é apenas o peso dos juros, mas também a expansão contínua das despesas obrigatórias.

As projeções do Congressional Budget Office indicam que os déficits podem voltar a ultrapassar 7% do PIB nos próximos anos, principalmente ao excluir receitas com impostos de importação. E ainda há a incerteza sobre as tarifas: se a Suprema Corte validar a autoridade presidencial para impor tarifas recíprocas, haverá um reforço temporário de receitas. Caso contrário, o governo pode recorrer a tarifas generalizadas de 15% por até 120 dias, mas depois só restariam as previstas nas Seções 232 e 301, que exigem investigações demoradas. Mesmo que o Executivo tente acelerar esse processo, não há garantia de estabilidade nessa fonte de arrecadação.

O shutdown atual, que ameaça ser o mais longo da história, é apenas um sintoma da confusão fiscal e política. A aprovação do orçamento de 2026 emperrou, e o governo depende de votações de emergência para seguir funcionando. Republicanos e Democratas não chegam a um acordo, principalmente em relação aos gastos sociais com o Medicaid e com o Affordable Care Act (Obamacare). O teto da dívida continua sendo um fantasma recorrente, com negociações que só empurram o problema para frente. O resultado é um ambiente em que a política fiscal se tornou refém de disputas partidárias, sem perspectiva de reformas abrangentes que possam conter a trajetória da dívida.

Na prática a discussão passa ao largo de encarar o problema, o aumento monotônico de uma dívida que em poucos momentos da história americana foi tão grande.

No fim das contas, o cenário se resume a duas possibilidades: ou o prêmio de risco sobe tanto que força o governo a agir, ou a inflação acaba sendo o caminho “fácil” para reduzir o peso real da dívida. Nenhuma das duas opções nos leva a um ambiente de estabilidade. E o problema não é só americano: a Europa também está endividada, com déficits persistentes, ainda que menores. O resultado é um mundo em que a percepção de risco fiscal aumenta, investidores buscam refúgio em ouro e até em criptomoedas, e a inflação se torna o ajuste silencioso para um sistema global que gasta mais do que arrecada.

A política fiscal dos EUA, portanto, virou um jogo mais arriscado. O prêmio de risco nos Treasuries já mostra que o mercado não compra mais a ideia de que “dólar é sempre seguro”. Entre ajuste e inflação, a escolha parece estar sendo feita pela inércia: deixar a inflação corroer a dívida. O shutdown, nesse contexto, é só a ponta do iceberg de um problema muito maior, que deve marcar a economia global nos próximos anos.

*Este artigo tem as co-autorias de Rita Milani, economista da BuysideBrasil, Andrea Damico, socia fundadora da BuysideBrasil.

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Sobre o autor

Luiz Fernando Figueiredo