Um dos principais erros históricos da sociedade brasileira foi não ter ampliado a escolaridade da nossa população ao longo do século XX. Isso teve implicações importantes para a pobreza, saúde, desigualdade de renda, criminalidade e produtividade da população brasileira. Qual a magnitude desse erro? Porque ele ocorreu? Esse problema já foi resolvido?
Em primeiro lugar, é importante documentar a magnitude desse atraso. Em artigo recente, usamos dados históricos do Ministério dos Negócios do Império, Anuários Estatísticos do Brasil e Censos Demográficos para construir medidas inéditas de escolaridade em cada Estado brasileiro desde 19001. Os dados mostram que somente 1,5% da população acima de 10 anos tinha o ensino secundário completo em 1940 e apenas 7% atingiu esse nível em 1970. Enquanto isso, nos EUA, a porcentagem de pessoas com ensino médio completo passou de 25% em 1940 para 50% em 1970.
Mas, por que será que isso aconteceu? O nosso grande erro histórico não parece ter sido somente a falta de investimentos em educação, mas principalmente as altas taxas de repetência que prevalecem no Brasil desde o início do século passado. Um dos grandes responsáveis por explicar isso para a sociedade brasileira foi o brilhante físico tornado educador Sérgio Costa Ribeiro. A sua história é bastante interessante e pode ser encontrada em (www.sergiocostaribeiro.ifcs.ufrj.br/). Em 1991, ele publicou um dos artigos mais importantes da academia brasileira: “A Pedagogia da Repetência”.
Nesse artigo, ele mostra como as estatísticas oficiais sobre evasão e repetência no Brasil estavam equivocadas. Como não havia informações sobre o fluxo dos mesmos alunos ao longo das séries, as publicações oficiais desde os anos 30 pareciam mostrar que o grande número de alunos mais velhos matriculados na primeira série do ensino primário refletia a dificuldade de entrar na escola na idade certa por causa da falta de vagas no sistema escolar. Assim, a recomendação era para construir novas escolas.
Entretanto, o que ocorria na realidade é que a repetência era muito elevada. Usando dados das primeiras Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios, em coautoria com Fletcher (e mais tarde com Rubem Klein), Sergio mostra que grande parte dos alunos entravam na escola na idade correta, mas os que repetiam e se matriculavam novamente eram entendidos pelo sistema como novos alunos. Assim, as estatísticas oficiais mostravam uma taxa de evasão enorme, porque o número de alunos caia abruptamente entre a primeira e a segunda séries. Mas, essa “queda” no número de alunos entre as séries decorria do fato de que grande parte dos alunos repetia de ano e se matriculava no ano seguinte na primeira série novamente.
Isso também fazia com que o número de novos alunos nas estatísticas oficiais fosse sempre maior do que o tamanho da geração, o que seria impossível em um sistema que evolui de forma equilibrada. Na verdade, quem primeiro descobriu essas inconsistências nas estatísticas oficiais foi Teixeira de Freitas, que publicou esses achados no primeiro volume de revista brasileira de estatística em 1940. Mas Teixeira de Freitas não foi levado a sério na sua época, tendo sido resgatado somente por Sergio Ribeiro.
O que mostram as estatísticas corrigidas? Mostram que a taxa de repetência ao longo do século XX sempre permaneceu perto de 60%, enquanto a tão propalada evasão escolar era de apenas 2%. Além disso, a desigualdade nas taxas de reprovação era muito grande. Enquanto no Sudeste urbano de alta renda a reprovação era de 37%, no Nordeste rural de baixa renda ela atingia absurdos 74%! Assim, desde o início do século passado, grande parte dos alunos entra no sistema escolar, passa vários anos na escola, não consegue aprender a ler e escrever de forma correta e é reprovada em alguma série.
Grande parte dos investimentos em educação eram (e ainda são) desperdiçados com alunos que não saem do lugar. Os números são impressionantes: de uma geração com aproximadamente 2 milhões de pessoas nascidas em 1920, somente cerca de 10 mil concluíram o ensino fundamental em 1936 e 4 mil concluíram o ensino secundário em 1940.
Não há dados demográficos dos repetentes naquela época, mas parece lógico inferir que quase todos os filhos e netos de escravos que entravam no sistema escolar repetiam de ano. Foi isso que provocou o grande atraso escolar brasileiro e a grande desigualdade de renda entre as regiões e entre pessoas de uma mesma região, que permanecem até hoje no Brasil. Com o conhecimento que temos hoje em dia sobre a importância da interação saudável com os pais nos primeiros anos de vida para a formação e aprimoramento das habilidades cognitivas e socioemocionais, não é de se admirar que os filhos de escravos tivessem mais dificuldade para aprender. Mas, ao invés de persistir, como fizeram os americanos, e alterar os métodos de aprendizagem para lidar com essa situação, a sociedade brasileira da época optou por repeti-los várias vezes de ano até que eles deixassem a escola. Como deixamos isso acontecer?
Na verdade, isso não deveria nos surpreender, porque as taxas de repetência são altas até hoje e grande parte de sociedade aprova isso. Em 2015, 29% dos alunos no 9º ano já tinham repetido alguma série. No Nordeste a parcela de alunos repetentes hoje em dia atinge 37%, enquanto no Sudeste ela é de 22%. Os regimes de progressão continuada (ciclos) são muito efetivos para diminuir a repetência e evasão, sem grande redução de notas. Porém, eles são bastante impopulares até hoje, ridicularizados pelos professores, que temem não poder controlar seus alunos, pelos pais, que acham que seus filhos não vão aprender e também por parte da nossa elite, que muitas vezes defende uma escola pública que só aprova os melhores, mesmo que seus filhos estudem em escolas privadas com taxas de reprovação ao redor de 12%.
E, assim, Sergio da Costa Ribeiro termina seu artigo: “Como explicar o fato de a repetência ser tão alta em todos os estratos sociais? Existiria uma pedagogia da repetência? Seria este um componente cultural da nossa práxis pedagógica? (..) Mesmo correndo o risco de ser simplista e reducionista, achamos que a prática da repetência está na própria origem da escola brasileira. (..) As análises antropológicas até hoje mostram claramente na cultura do sistema a imputação do fracasso escolar aos próprios alunos, ora a seus pais, ora ao sistema sócio-político, raramente aos professores, à sua formação ou à organização escolar”.
E conclui: “Torna-se quase ridículo pensar que a modernização do país possa ocorrer sem a universalização competente da educação fundamental. Diante desse quadro descrito, nunca chegaremos a ser o último país do primeiro mundo, mas corremos o sério risco de nos tornarmos o primeiro país do quarto mundo”. Inacreditável.
1 A História da Educação e as Origens da Desigualdade Regional no Brasil”, por Komatsu, Menezes-Filho, Oliveira e Viotti.
Fonte: Valor Econômico
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