Economista joga luz sobre o presente ao oferecer novas interpretações sobre os equívocos do “milagre” e de outras políticas econômicas ao longo das últimas cinco décadas
Giuliano Guandalini
Em dezembro de 1974, o então presidente da República, general Ernesto Geisel, entrou em cadeia nacional de rádio e TV no seu pronunciamento de fim de ano e comentou as medidas emergenciais contra uma crise que começava a ganhar força. O país, sob o governo autoritário dos militares, vinha acumulando uma sequência invejável de crescimento, mas uma virada na conjuntura internacional começava a contagiar a economia brasileira. Eram as primeiras evidências de que o “milagre” era mais frágil do que fazia crer a propaganda oficial.
Em sua fala, Geisel afirmou que desde meados de 1973 “já se prenunciavam desanimadoras perspectivas para a conjuntura mundial”. O presidente citou a “disrupção do sistema monetário internacional” e a disparada nos preços das matérias-primas, “sobretudo do petróleo e de seus inúmeros derivados”, além da “crescente falta de liquidez no mercado internacional de capitais, asfixiando os investimentos projetados”. Não poupou a audiência do linguajar tecnocrático, falando de crise no balanço de pagamentos em muitos países, o que, disse o presidente, levou “nações de tradição liberal” a assumir políticas protecionistas. Mencionou ainda o “fenômeno singular e quase paradoxal de generalizada estagnação com inflação”.
Depois de delinear um panorama externo desafiador, Geisel tranquilizou a nação, dizendo que o país vinha se mantendo relativamente ileso. Ponderou que havia chegado a hora de fazer ajustes para frear a alta dos preços, mas, no Brasil, “o mecanismo compensatório da correção monetária assegura entre nós elevada capacidade de absorção pela economia de índices bem mais elevados de inflação do que em outros países”. Dessa maneira, assegurou, a economia interna manteria o avanço a taxas próximas a 10% ao ano, enquanto nos outros países o crescimento era “irrisório”.
Geisel havia acabado de apresentar uma nova rodada de projetos ambiciosos, com o lançamento do II Plano de Desenvolvimento Nacional, o II PND. No receituário, subsídios às exportações e crédito público para o desenvolvimento da indústria de base, além dos investimentos estatais em energia, na exploração de petróleo e nas novas fronteiras da agricultura. Em certos aspectos, era uma política que lembra a China dos últimos anos — até mesmo na utilização do crescimento acelerado como instrumento político de legitimação do poder. Mas há uma diferença essencial: o Brasil não dispunha de capitais domésticos suficientes para fazer frente a todos esses projetos, que foram financiados com dólares que vinham de fora. Em pouco tempo, a bomba da dívida externa desabaria sobre o país, deixando uma ressaca amarga depois dos anos do “milagre”.
No que diz respeito à condução da economia, o Brasil se perdeu algumas vezes ao longo de sua história. O governo Geisel foi uma delas, como expõe o economista Affonso Celso Pastore em seu novo livro, Erros do Passado, Soluções para o Futuro – A herança das políticas econômicas brasileiras do século XX (Portfolio Penguin). Pastore reúne evidências e argumenta que houve três grandes equívocos da equipe econômica de Geisel. O primeiro foi insistir nos investimentos na substituição de importações, despejando recursos públicos nos setores de bens de capital e insumos básicos, numa política cujo resultado foi acentuar “um círculo vicioso de maior protecionismo e menor produtividade do qual nunca nos livramos”. O segundo erro foi acreditar que a origem da crise estivesse no choque do petróleo. Não estava, tanto que o México, exportador de petróleo à época, foi o primeiro país a tombar na crise da dívida externa. O diagnóstico impreciso levou a ações equivocadas, porque o problema na verdade tinha a ver com o terceiro e maior dos erros do governo Geisel: inflar o crescimento interno à base de subsídios e créditos financiados com o aumento acentuado da dívida externa. No final da década de 1970, quando os Estados Unidos subiram os juros para combater a inflação, México, Brasil e diversos outros países em desenvolvimento foram à lona.
Além de dissecar os erros do governo Geisel e jogar luzes sobre as suas consequências futuras, Pastore traz novas interpretações para outros três temas centrais da história econômica recente, mas que, segundo o autor, nunca foram devidamente analisados: as verdadeiras causas e os equívocos do “milagre brasileiro”; a herança inflacionária do Programa de Ação Econômica, o PAEG, lançado no início do governo militar; e a crise da dívida nos anos 1980. O livro traz sete capítulos, tratando desde o papel da agricultura e do câmbio no desenvolvimento, mas, particularmente, esmiuçando os assuntos nos quais Pastore se especializou em sua carreira: política monetária, crises fiscais e desequilíbrios nas contas externas. É uma história contada a partir dos erros passados e cujas lições não foram devidamente assimiladas — o que ajuda a entender por que o país não conseguiu se livrar da armadilha que o condena à instabilidade e ao baixo crescimento.
Como afirma na introdução, o economista procurou se guiar por três princípios: o confronto científico com os fatos, na tradição de Karl Popper; o aprendizado contínuo da teoria econômica, “um esforço que nunca cessa”; e, por fim, “a total concentração na busca de soluções para os problemas econômicos enfrentados pelo Brasil”. Em sua investigação pelas melhores explicações possíveis, Pastore, sempre municiado de evidências empíricas e modelos matemáticos simples, repassa interpretações e análises largamente aceitas, mas que, em sua avaliação, contam apenas parte da história ou estão simplesmente erradas.
Em alguns temas, Pastore aprofunda as análises feitas no livro Inflação e Crises – O papel da moeda, de 2014. É o caso de sua avaliação do Programa de Ação Econômica do Governo, o PAEG. Concebido por Octavio Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos, ministros da Fazenda e do Planejamento, e implantado em 1966, trouxe ações para equilibrar as contas públicas e reduzir a inflação, bem como reformas importantes no arcabouço institucional da economia, entre elas um novo sistema tributário e a criação do Banco Central. Mas o plano, em sua tentativa de fazer um ajuste gradual, criou um mecanismo problemático que traria sérios contratempos: a correção monetária. Escreve Pastore: “Paradoxalmente, foi o PAEG que, ao lado de reformas realmente inovadoras, cometeu dois erros que se transformaram nas sementes do que mais tarde se tornou conhecido como uma inflação inercial”. E quais foram os erros? O primeiro foi a criação de mecanismos de indexação. A ideia era fazer uma transição gradual, reduzindo os custos do combate à inflação e priorizando uma volta rápida ao crescimento acelerado. A segunda falha foi não ter dado ao BC os instrumentos necessários para executar uma política de estabilização monetária.
A indexação de preços e salários foi a condição necessária, mas não suficiente, para alimentar a inflação inercial, diz Pastore. A condição suficiente foi o fato de não haver uma âncora para a política monetária. Hoje, por exemplo, a âncora é a meta de inflação, estabelecida em 1999, e, no início do Real, havia a âncora cambial. Sem âncoras, a inflação se alimentava em si mesma, sem freios, numa espiral geométrica que levou à superinflação e aos períodos de hiperinflação. O arranjo institucional era também falho. Antes da criação do Banco Central, o Banco do Brasil cumpria as funções de autoridade monetária, e sua atuação se misturava a interesses comerciais, políticos e corporativos. O BC brasileiro surgiu com atraso em relação a seus pares nos países avançados e no início teve pouca autonomia para se encarregar de controlar a liquidez na economia e cuidar da saúde do sistema financeiro. Foi rapidamente conspurcado pelos ímpetos do governo e do empresariado de manter aberta a torneira do crédito público. A influente burocracia do Banco do Brasil, além do mais, não queria saber de renunciar ao seu privilégio histórico de ser, ao mesmo tempo, a autoridade monetária e a principal fonte de financiamento do país.
O controle da inflação ficou a cargo de uma instituição política, e não técnica: o Conselho Interministerial de Preços, o CIP, instituído em 1968, do qual faziam parte diversos ministros. Representantes das confederações empresariais e dos trabalhadores chegaram a fazer parte do conselho consultivo. Foi o pontapé inicial da desastrada política de controles de reajustes e congelamentos de preços. Segundo Pastore, ministro Antônio Delfim Netto tinha uma visão “peculiar” sobre a inflação. Desprezava a eficácia da política monetária em prol da manutenção do ritmo elevado na atividade. “O crescimento econômico era ao mesmo tempo o instrumento usado para legitimar o governo autoritário e para libertar o espírito animal dos empresários industriais, dos quais dependia em grande parte o apoio político ao governo”, diz o economista. No período mais arbitrário da ditadura, a economia também sofria com arbitrariedades. A inflação foi um vírus que se alastrou pela economia sem ter enfrentado vacinas nem medidas de contenção.
Na epidemia do coronavírus, os brasileiros se habituaram a ver os gráficos com a evolução do número de infectados e de óbitos pela doença. Quanto maior o índice de transmissão, mais empinadas as curvas. As máscaras, o distanciamento social e a vacinação, além da própria imunização adquirida, alteraram a trajetória das curvas. Há menos doentes e menos vítimas fatais. Existe uma analogia possível com a alta nos preços. Sem medidas de combate às suas causas, é uma enfermidade que até pode ficar adormecida por algum tempo. Foi o que ocorreu nos anos 1970, por meio dos preços monitorados e das manipulações cambiais. Os desequilíbrios estruturais foram se acumulando, particularmente a partir do II PND. A curva exponencial dos reajustes saiu do controle. O pretenso “milagre” deu lugar à hiperinflação, à estagnação econômica e década perdida.
O Brasil teve de fato um milagre? A análise de longo prazo dificilmente corrobora plenamente essa conclusão. Ocorreu, sem dúvida, um período de rápido crescimento. Uma das razões foi a urbanização, de maneira similar ao ocorrido recentemente na China. Em 1950, 63% da população em idade ativa era empregada na agricultura; em 1980, o percentual já havia caído abaixo de 30%. Houve, forte, uma migração maciça, transferido trabalhadores para setores mais produtivos, na indústria e nos serviços. Houve também a contribuição de reformas do PAEG, como a tributária, que ajudaram no aumento da produtividade. Mas as taxas elevadas de avanço no PIB foram, em boa medida, infladas artificialmente por um programa agressivo de investimentos financiados com dinheiro público, subsídios a empresas (estatais e privadas) e aumento da dívida externa. Desse período nasceram grandes projetos estatais como a Embraer (1969), as usinas de Angra 1 (construída a partir de 1972) e Itaipu (construída a partir de 1975) e o Proálcool (1975).
Entre 1975 e 1980, a economia brasileira manteve um ritmo de crescimento elevado, ao redor de 7,5% ao ano. O avanço, porém, era dependente dos investimentos subsidiados e do protecionismo, uma receita que custaria caro ao país. “O II PND deu um enorme passo atrás quando optou pelo retorno à substituição de importações com o uso intensivo de empresas estatais”, afirma Pastore. “Os corações e as mentes no Brasil foram seduzidos pela crença de que o capitalismo de Estado era uma forma eficiente de organizar a produção, e a consequência foi o crescimento intenso das empresas estatais.”
O crescimento acelerado sobreviveu enquanto havia financiamento externo. A abundância de liquidez nos mercados internacionais resultava sobretudo da emissão de dólares pelos Estados Unidos, porque o país necessitava de recursos para financiar a Guerra do Vietnã (1959-1975). Os desequilíbrios nas finanças americanas tornaram insustentável a manutenção do regime de paridade internacional de moedas do sistema de Bretton Woods, que acabou sendo abandonado em 1973. A desvalorização cambial e o aumento da inflação obrigaram o Federal Reserve a reagir com uma acentuada elevação na taxa de juros, com repercussões em todo o mundo. Quando Paulo Volcker assumiu o Fed, em 1979, a inflação americana estava em torno de 15%. Os juros básicos estavam em 11%, mas em meados de 1981 já haviam atingido 20%. “A dívida externa brasileira, que era totalmente expressa em dólares, tornou-se insustentável”, diz Pastore. O pagamento de juros sobre a dívida externa, que era de 10% das exportações em 1970, saltou para 40% em 1970 e 60% em 1982.
O custo do crédito subiu ao redor do mundo. Países altamente endividados e com déficits nas contas externas, como o Brasil, passaram a ter dificuldades crescentes para se financiar. A dívida externa brasileira, que equivalia a 15% do PIB em 1973, já era de 55% do PIB em 1982. As reservas internacionais em moeda forte minguaram, e o país ficou sem recursos para honrar seus compromissos. Outras nações endividadas passaram por dificuldades semelhantes, incluindo exportadores de petróleo, como era então o México. A crise resultou do endividamento excessivo contraído no período de liquidez elevada. Ficou para a história, entretanto, a versão de que o país foi uma vítima inocente dos choques do petróleo. Não é bem assim, insiste Pastore, e já em meados dos anos 1970 havia quem alertasse para o risco de fechar os olhos para a alta na inflação e para os desequilíbrios fiscais e nas contas internacionais.
Outra narrativa histórica equivocada — e que influenciou mais de uma geração de economistas e formuladores de políticas públicas — foi a hipótese segundo a qual o forte crescimento entre 1968 e 1973 teria sido consequência de uma política deliberada de reprimir os salários dos mais pobres, favorecendo os lucros empresariais e o aumento das rendas daqueles que já eram mais ricos. Foi uma interpretação sugerida inicialmente por Celso Furtado e depois abraçada por diversos economistas, inclusive no exterior. Mas os dados desmentem essa versão. As pesquisas empíricas de Carlos Geraldo Langoni, feitas ainda no início dos anos 1970, demonstraram que a desigualdade decorria do fato de as pessoas com maior nível educacional terem, proporcionalmente, um maior aumento de renda. A ampliação das disparidades foi consequência do crescimento acelerado, e não a sua causa. Ocorreu um aumento na demanda por profissionais mais qualificados. Os mais escolarizados saíram ganhando. Estudos mais recentes corroboram os achados de Langoni. Segundo Pastore, “a piora na distribuição de rendas não foi nem uma consequência das políticas de governo, nem a causa das elevadas taxas de crescimento”. Os militares erraram ao não investir na educação dos mais pobres e tolerar um crescimento desequilibrado.
No final do governo militar, a inflação anual já superava 200%. Pastore, que foi presidente do Banco Central entre 1983 e 1985, rememora a sua atuação nas negociações da dívida externa e os ajustes para estabilizar a economia. Revela sua frustração pela incapacidade de agir de maneira mais contundente contra a alta nos preços. Uma expectativa de estabilização foi aberta com a negociação de apoio financeiro do FMI e de renegociação da dívida com os bancos credores. Tancredo Neves, o então presidente eleito, havia dado apoio aos termos do plano. O FMI então decidiu aguardar a posse do novo governo para assinar o acordo. “Quis o destino que Tancredo Neves morresse antes da posse, assumindo o vice-presidente, José Sarney, que tinha outras ideias — infelizmente muito piores”, diz Pastore.
Como a inflação elevada descambou para a hiperinflação? Foi um desastre resultante de uma conjugação de fatores semeados no governo militar. O déficit público era financiado com emissão de dinheiro, e a moeda se ajustava passivamente à inflação. A passividade monetária, combinada com a indexação, evolui para a inflação inercial. O BC não dispunha de instrumentos para atuar na estabilização dos preços. O golpe final veio das contas das transações internacionais. O país teria que passar por um realinhamento cambial dramático para equacionar os desequilíbrios e honrar os pagamentos da dívida externa. Como mostra Pastore, a desvalorização geraria choques inflacionários que não se dissiparam, por causa da indexação e da inexistência de âncoras monetárias.
O governo fez duas maxidesvalorizações: a primeira, em 1979, elevou a inflação para o patamar de 100% ano, e a segunda, em 1983, levou-a acima de 200% ao ano. Os reajustes de preços passaram a seguir um comportamento de random walk, com trajetória aleatória e imprevisível. “Os indivíduos e as empresas formavam suas expectativas tendo conhecimento da inércia, e o Banco Central não conseguia evitar que a moeda fosse totalmente passiva”, diz Pastore. Era uma bola de neve ladeira abaixo, descontrolada, que se transformou em uma avalanche. Para romper a inércia, seriam necessárias dosagens de taxas de juros extremamente elevadas — e impraticáveis.
Com Sarney, foi deixado de lado o plano de estabilização iniciado no final do governo Figueiredo. Vieram o Cruzado e uma sequência de planos malsucedidos, baseados em congelamentos temporários e sem nunca tocar nas questões estruturais. Tão longo os controles eram abandonados, os reajustes voltavam com força, levando a inflação a superar 1.000% ao ano. Em 1989, o IPCA acumulado em 12 meses chegou a atingir 14.520% e em março de 1990, mês da posse de Fernando Collor, o índice alcançou inimagináveis 135.422%. São números vistos anteriormente em situações muito particulares em nações arrasadas, como a Alemanha da República de Weimar. (Em 1923, no ápice da hiperinflação alemã, os preços subiam em média 20% ao dia e 30.000% ao mês.) A redemocratização brasileira trouxe conquistas políticas e sociais, mas, na política monetária, o desastre foi considerável. Diz Pastore: “O período que se estende de 1985 até o Plano Real foi uma fase na qual a economia brasileira viveu um período de obscurantismo monetário sem precedentes e que, espero, jamais retorne”.
O Plano Real foi sem dúvidas um grande divisor de águas, enfatiza Pastore, porque pela primeira vez em muito tempo havia as âncoras e os instrumentos mínimos necessários para a estabilização dos preços. De início, a maior âncora foi a cambial. Mas manter o controle da cotação trazia custos crescentes para a economia, na forma de juros elevados, déficits externos e aumento da dívida. O arcabouço institucional ganhou maior solidez depois da implementação do regime de metas de inflação, em 1999, em um regime de câmbio flutuante. A âncora monetária, como em nos países mais desenvolvidos, passou a ser a meta de inflação. Mais recentemente o BC obteve a autonomia legal, que, para ser efetiva de fato, terá que passar pelo teste da prática. O ano eleitoral que se aproxima, num cenário de reajustes de preços em alta e crescimento econômico declinante, será um desafio formidável para diretoria da instituição. Mas nem de longe se compara ao que o Brasil viveu até o início dos anos 1990.
A grande ameaça atual, como tantas vezes no passado, vem das contas públicas. A estabilidade econômica está ancorada no tripé metas de inflação, câmbio flutuante e superávit fiscal primário. Hoje, sem superávit fiscal, o tripé está fragilizado, o que poderá ressuscitar antigos problemas. Nos tempos de inflação elevada, os desajustes nas contas públicas ficavam mascarados por causa dos ganhos como a senhoriagem, a receita auferida pelo governo com a emissão de moeda. Com o real, a senhoriagem praticamente desapareceu. Os déficits fiscais vieram à tona, e a dívida interna cresceu. Por isso, com certa simplificação, diz-se que o real trocou inflação por dívida. A maneira de evitar que o endividamento interno escape do controle é obter superávits primários nas contas públicas. Do contrário, o país corre o risco de ingressar no campo da chamada dominância fiscal. A política monetária perde eficácia, porque a inflação funciona como válvula de escape: sobe para acomodar as despesas e evitar o descontrole do endividamento interno. Era o que ocorria no Brasil do passado e é o que acontece ainda hoje na Argentina. O governo equilibra as suas finanças de maneira espúria, por meio da emissão de dinheiro e com as receitas da senhoriagem. A moeda se torna passiva.
O governo Lula, em seu início, manteve o superávit fiscal e conquistou bons resultados na economia. O país chegou a ser elevado, pela primeira vez, à categoria de “grau de investimento”. Tudo começou a mudar a partir da crise financeira internacional iniciada em 2008. A resposta do governo Lula, lembrando Geisel, foi reagir dobrando a aposta no aumento de gastos públicos e nos subsídios aos investimentos internos. A fase mais ortodoxa (“paz e amor”) da política econômica do governo petista já havia sido abandonada. O populismo de cunho varguista emergiu com força, sobretudo diante da necessidade de manter a popularidade elevada em meio às denúncias do Mensalão e de outros escândalos. O salto nas despesas públicas ajudou a eleger Dilma Rousseff, que, a despeito de ajustes pontuais, investiu com tudo no “capitalismo de estado”. Foi a “Nova Matriz Econômica”, tão nova quanto Vargas, Geisel e alguns dos conselheiros do governo Dilma. Em 2015, o Brasil perdeu “o grau de investimento”. O desarranjo fiscal derrubou a confiança e mergulhou o país em uma profunda recessão. Desde então, o país passou a registrar déficits fiscais. “Em muito pouco tempo, tudo o que havíamos progredido desde o início do Plano Real foi jogado por terra”, diz Pastore.
No governo de Michel Temer, em 2016, foi aprovada a lei do teto de gastos, para servir de nova âncora fiscal para o país. A sustentabilidade dessa regra, contudo, depende de reformas que não estão ocorrendo. Agora, a regra do teto corre o risco de ser arruinada no balcão de negócios do Congresso. Jair Bolsonaro, comandante de um governo fraco e refém de chantagens, não tem no equilíbrio fiscal uma de suas prioridades. Sem o teto, qual será a âncora fiscal? O fato é que, sem uma âncora fiscal, o tripé da sustentabilidade terá dias contados.
“A origem da deterioração fiscal está longe de ser algo inexplicável. Ao contrário, ela é a consequência de uma deterioração das instituições políticas”, afirma Pastore. “A história não pode ser refeita, e teremos que arcar com os custos gerados pela deterioração institucional e pela sua reconstrução, se essa for a opção tomada pelo país.”
As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.