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Metas em mutação

Uma postura mais acomodatícia do Fed tende a beneficiar ativos de risco, como os brasileiros

O Fed aproveitou o evento anual de bancos centrais em Jackson Hole (virtual) desse ano para apresentar um novo arcabouço de política monetária. A nova estrutura tem três aspectos principais: o papel do objetivo numérico de informação, uma reação em relação aos desvios de índice e referência aos patamares desejados e uma postura ambiciosa quanto ao mercado de trabalho.

Antes de discutir essas mudanças, vale ressaltar que o Fed só pôde fazer esse anúncio porque conta com autonomia de objetivos: o marco legal estabelece que a política monetária deve perseguir emprego máximo, estabilidade de preços e taxas de juros de longo prazo moderadas, mas cabe à autoridade monetária interpretar e tornar operacional, por meio de um arcabouço de política, as diretrizes da legislação.

Uma postura mais acomodatícia do Fed tende a beneficiar ativos de risco, como os brasileiros

Historicamente, o Fed, reconhecendo que o desemprego depende basicamente de fatores não monetários, tem se limitado a perseguir um objetivo numérico para a inflação. Este, desde 2012, está em 2,0%. A novidade a esse respeito é que ao invés de buscar uma variação

interanual do índice de preços de 2,0% a cada mês, a política monetária vai perseguir 2,0% de inflação, em média, ao longo do tempo. A referência a uma inflação média implica que períodos de inflação abaixo da meta devem ser seguidos por períodos com inflação acima da meta – a noção que desvios passados e presentes deverão ser compensados

por desvios na direção oposta, no futuro, é a maior diferença em relação ao regime de metas convencional, no qual não existe o compromisso de compensar erros pretéritos. O corolário é que o Fed não atuará preventivamente quando a inflação, atualmente em 1,0% (ou 1,3%, segundo o núcleo), ameaçar superar a meta, mas permitirá que a mesma seja excedida, por um tempo, de forma a levar a média para próximo de 2,0%. Isto significa que, ainda que o objetivo de médio prazo seja bem claro, o objetivo de política monetária intermediário ou de curto prazo pode ir mudando ao longo do tempo, o que pode complicar a ancoragem das expectativas inflacionárias.

O comportamento recente do mercado de trabalho americano influenciou outro aspecto do novo arcabouço de política monetária. A relação (inversa) tradicional entre desemprego e inflação parece ter se alterado, visto que a economia americana vinha, até o choque da pandemia, conseguindo manter níveis historicamente bastante elevados de utilização da força de trabalho sem observar pressões inflacionárias consistentes.

Com isso, o Fed decidiu que doravante irá reagir de forma assimétrica, ajustando a política monetária mais rapidamente quando o desemprego sobe do que quando o desemprego cai. Cabe notar que a perda de sensibilidade da inflação em relação ao estado do mercado de trabalho e, em última instância, do ciclo econômico, gera problemas no momento atual de inflação abaixo da meta, mas pode gerar dificuldades ainda maiores se/quando a inflação passar a exceder a meta, pois seria necessário, tudo o mais constante, uma desaceleração mais intensa da economia para promover a desinflação.

Finalmente, em reação às mudanças na opinião pública, o Fed se comprometeu a buscar ganhos amplos e inclusivos no mercado de trabalho. A ideia é que, para compensar problemas de capacitação de mão de obra ou mesmo de discriminação, seria importante visar uma taxa de desemprego agregada ainda mais baixa do que o que seria necessário tendo em vista a situação geral da força de trabalho.

O novo arcabouço implica riscos. Um deles é que a ancoragem das expectativas acabe sendo enfraquecida ao invés de reforçada, dada a possível confusão entre objetivos de curto e médio prazo para a política monetária. Outro risco é que a persistência da inflação abaixo da meta acabe solapando no nascedouro a credibilidade do novo regime. Adicionalmente, ao se comprometer com o desemprego mínimo e melhoras amplas e inclusivas do mercado de trabalho, o Fed pode estar oferecendo mais do que terá condições para entregar, o que gera o risco de frustração e intensificação das cobranças sobre a autoridade monetária. Note-se também que, caso a postura do Fed contribua para a apreciação dos ativos de risco, usualmente detidos pelas camadas da alta renda e patrimônio, as medidas de desigualdade social podem até aumentar, o que provavelmente acarretaria reparos à atuação do banco central.

Tais riscos podem se materializar nos próximos meses e anos. Já no curto prazo, a consequência imediata da mudança de arcabouço de política monetária nos EUA, que não foi de todo surpreendente para o mercado, foi enfraquecer o dólar perante as moedas de outras economias desenvolvidas, em especial o euro, promover certa redução da taxa de juros real e aumento da inclinação da curva de juros americana. Moedas de economias emergentes também foram beneficiadas, ganhando em média 2% frente ao dólar, sendo que as mais voláteis, como o real, avançaram mais (5%, aproximadamente). Uma postura mais acomodatícia do principal banco central tende a beneficiar ativos de risco, como os brasileiros, mas nós não devemos contar com essa ajuda externa permanentemente.

Fonte: Valor Econômico

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita