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Procurar a Justiça para garantir Injustiça?

Como andam os brasileiros na fruição dos direitos que supostamente deveriam ser protegidos pelo império da lei?

MIGALHAS

Não é para procurar Justiça que vão ao Tribunal? Mas ninguém diz a verdade ao Juiz?” Isaias 59:4

A Declaração Universal de Direitos humanos preconiza “ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão” e os seus artigos 1º, 7º, 8º asseguram à família humana a liberdade e igualdade em dignidade e direitos, o dever do espírito de fraternidade entre si, igualdade perante a lei, o direito de igual proteção da lei, o direito de receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. Qual seria a violação mais cruel ao espírito de fraternidade que segundo a declaração deveria reinar entre os homens? Seria a inversão das vocações dos agentes públicos que se locupletam dos dinheiros públicos entregando apenas dores e misérias aos seus patrões, o cidadão brasileiro, ou seria o abuso da vocação que, atribuída para a correção de tais violações, as avaliza?

Segundo o último levantamento do IBGE, 51% dos brasileiros, 104 milhões de pessoas vivem de trabalho informal e tem uma renda média mensal per capta de até R$ 413 reais. A partir deste Brasil real, como andam os brasileiros na fruição dos direitos que supostamente deveriam ser protegidos pelo império da lei? A vida e a segurança lhes são formalmente asseguradas, mas ao saírem de casa, atrás do pão de cada dia, andam no escuro até um transporte público precário e lotado e temendo somar à fileira dos 60.000 homicídios médios anuais. Os homicídios anuais do Brasil são três vezes maiores que os homicídios de toda Europa junta, que tem 743 milhões de habitantes. Nos últimos 10 anos, o Brasil quase triplicou o seu investimento em segurança pública e no mesmo período o número de homicídios quase dobrou.

Quando prevemos que todos, e em especial crianças e os adolescentes, possuem direito a educação, a profissionalização e a dignidade, como lidamos com os indicadores educacionais, que revelam termos apenas 8% da sua população proficiente em leitura, escrita e habilidades matemáticas e 33 milhões são analfabetos funcionais? Quando o constituinte preconizou sobre o direito à saúde e saneamento básico, certamente não estava nos planos a colheita de hoje, as mortes por falta de acesso a tratamentos e internações, as deficiências por falta de ortopedista, que 100 milhões viveriam sem esgoto e 35 milhões sem água tratada. Considerando que o número de escravos trazidos ao Brasil colônia foi maior de toda América, quase 5 milhões e que hoje temos mais do que o dobro, 10.4 milhões vivendo com R$ 51 médio mensal per capita, fica a dúvida sobre qual impacto da  “liberdade na República” na qualidade de vida das pessoas? Até quando toleraremos tanta mediocridade e injustiça no meio a tanta riqueza? Teria o problema um nome: Corrupção, talvez? Teria um sobrenome: Impunidade?  

Quando a Declaração Universal de Direitos Humanos fala da proteção dos direitos humanos pelo império da lei, é prevendo que o direito prevaleça na regulação da sociedade e há um Sistema de Justiça que o assegura em última instância. A vocação da Justiça é uma das missões mais básicas da vida em sociedade: corrigir injustiças e garantir o exercício de direitos.

Poderia então a estrutura do Poder Judiciário ser movimentada para buscar a preservação de uma injustiça, para blindar uma violação ao direito de ser corrigida pelo império da Justiça? Estaria no “contrato social” do contribuinte brasileiro, especialmente daqueles 10 milhões que vivem com R$51 mensais e precisam comprar o feijão com o imposto embutido, suportar o custo de um dos Sistemas de Justiça dos mais caros do mundo para que este “serviço de justiça” se prestasse ser instrumento de impunidade para um corrupto confesso para, por meio de  “falhas processuais”, se alcance a anulação ou prescrição do processo, de modo que não precise suportar consequência alguma pela escolha criminosa, absolutamente racional, que roubou a dignidade deste próprio contribuinte?  E se cada operador do direito passasse por um crivo de accountability para o uso dos serviços de justiça, que “petições, recursos, incidentes..” seriam aprovados? O que diriam os contribuintes sobre cada uma das peças processuais protocoladas aos juízes e às Cortes? Aliás, será que há alguém, com um mínimo de pensamento crítico e ético, que considere aceitável que se possa apresentar a uma máquina custeada pelo contribuinte miserável brasileiro, questões processuais de lunática criatividade e sem qualquer prejuízo de defesa, com o compromisso único de garantir a perenidade da injustiça para a qual o tal sistema foi criado para corrigir? O comum desconstrói o certo? A Justiça pode se prestar para a Injustiça?

Aceitariam tais contribuintes brasileiros, por exemplo, que os fiscais do PROPINODUTO movimentassem o sistema de justiça custeado a peso de ouro pelo brasileiro comum, ao longo de 18 anos, para, por meio de infinitas petições, buscar garantir a impunidade de todos os anos de cadeia a que foram condenados em primeira instância, no Tribunal de Justiça e no Superior Tribunal de Justiça? Como reagiriam ainda, tais contribuintes, se soubessem que, além de totalmente livres, tais corruptos estivessem aguardando o passo da prescrição final no Supremo Tribunal Federal, para receberem o prêmio de ter os US$ 34 milhões, cerca de R$ 185 milhões, que desviaram, voltarem para suas próprias mãos? Com a vantagem de que o processo lhe serviria até mesmo como uma lucrativa aplicação, pois o dólar de hoje está valendo cinco vezes mais do que quando as propinas foram enviadas à Suíça? Semelhantemente, o que sairá desta máquina “de injustiça” quanto às condenações da lava jato nos próximos meses, 5, 10, 15, 20 anos quanto aos colarinhos brancos como Youssef, Marcelo Odebretch, André Vargas, Queiroz Galvão, Delúbio Soares, Eduardo Cunha, Fernando Soares, João Santana, Vaccari Neto, Léo Pinheiro, José Dirceu, Nestor Ceveró, Paulo Roberto Costa, Lula, Pedro Barusco, Pedro  Corrêa, Renato Duque…? O que veremos? E os 4,3 bilhões que já foram devolvidos, o que será deles? Também voltarão às mãos dos saqueadores? E todos os bens de luxo, jatinhos, obras de arte, jóias, iates, mansões? E as prisões dos “injustiçados” serão indenizadas, como já preconizam algumas vozes?

Há alguma ótica em que a impunidade do criminoso pode ser um alvo ético para se movimentar a Justiça? E se cada uma das petições iniciais, incidentais e a infinidade de recursos, apresentados nos mais de 75 milhões de processos- que tramitam todos os anos no Judiciário brasileiro- tivessem que passar antes pela resposta a seguinte pergunta:  o que esta peça busca no final das contas junto ao Poder Judiciário é fazer Justiça para a sociedade, é corrigir uma injustiça e garantir direitos?  O fato de a petição ser “processualmente viável” ou “juridicamente aceita” faria ela passar a um teste de “É justo o que se está buscando?”. E se tivéssemos uma honestidade radical para responder esta pergunta e logo em seguida, outra: qual o legado estamos deixando para nossos filhos neste mundo real? O que diríamos?

Prevê o Código de Ética dos Advogados do Brasil que os princípios que formam a consciência profissional do advogado e representam imperativos de sua conduta, são os de: lutar sem receio pelo primado da Justiça; pugnar pelo cumprimento da Constituição e pelo respeito à Lei, fazendo com que esta seja interpretada com retidão, em perfeita sintonia com os fins sociais a que se dirige e as exigências do bem comumser fiel à verdade para poder servir à Justiça como um de seus elementos essenciais; proceder com lealdade e boa-fé em suas relações profissionais e em todos os atos do seu ofício; empenhar-se na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio, dando ao constituinte o amparo do Direito, e proporcionando-lhe a realização prática de seus legítimos interesses; comportar-se, nesse mister, com independência e altivez, defendendo com o mesmo denodo humildes e poderosos; exercer a advocacia com o indispensável senso profissional, mas também com desprendimento, jamais permitindo que o anseio de ganho material sobreleve à finalidade social do seu trabalho; aprimorar-se no culto dos princípios éticos e no domínio da ciência jurídica, de modo a tornar-se merecedor da confiança do cliente e da sociedade como um todo, pelos atributos intelectuais e pela probidade pessoal; agir, em suma, com a dignidade das pessoas de bem e a correção dos profissionais que honram e engrandecem a sua classe.

Como o primado da Justiça, da verdade, da lealdade, da boa-fé, do bem comum e dos fins sociais da Justiça poderiam justificar uma litigância para a manutenção das violações de direito? Cabe inverter de ponta cabeça a vocação do Poder Judiciário para servir de instrumento de impunidade? Para um exercício de lealdade com nós mesmos, da próxima vez que nos percebermos favoráveis ou mesmo neutros e coniventes com a defesa da “litigância para a impunidade”- travestida de “garantismos”, “falhas”, prescrições, nulidades, indultos, anistias, que estejamos no mínimo conscientes de que estamos deixando o nosso legado para a deterioração do Sistema de Justiça, sem o qual não há Estado Democrático de Direito, nem ordem jurídica, muito menos combate à corrupção ou de todas as violações de direito e falta de prestação de serviços essenciais dela decorrentes.

Ao contrário, que de tudo isso, que do abismo, das cinzas possa começar a  nascer pessoas dignas, retas e honestas com o seu país e com o seu futuro. Que não vejamos mais petições se insurgindo contra o que é Justo e nem recursos protelatórios contra condenações corretas, proporcionais e idôneas para dissuadir novos crimes. Que possamos ver os juízes e as Cortes de Justiça, sempre que perceberem que as petições se afastam da Justiça, darem uma resposta que honre sua vocação institucional e sejam, em todas as circunstâncias, comprometidos em fazer Justiça a partir do conjunto de elementos que lhes forem apresentados e não em visões estanques e processuais que buscam esvaziar a aplicação do Direito a fatos reais. E, é sempre bom lembrarmos que a nossa responsabilidade ética não encontra escusa, nem licença no erro ou má-fé do outro “operador do direito”. O nosso padrão ético não pode ser moldado nem anulado pela falta de ética do outro. Bom mesmo, seria estarmos inseridos em um ecossistema que já funciona com um padrão ético elevado, tendo outras gerações desbravado isso para nós.  Mas, quando não é o caso, cabe assumirmos a conta que nos chega. Outros resolveram a escravidão, a hiperinflação…, nós estamos sendo claramente convocados para conquistar e construir um alicerce de integridade para nossa nação, o que vai impor, nas escolhas e posturas pessoais, renúncias e compromissos com a retidão.

Parece que os criminosos não entenderam que o direito a defesa não engloba inverter a real vocação do Poder Judiciário. Este Poder, vale ressaltar, um dos mais caros do mundo per capta e, portanto, sustentado com enorme sacrifício pelo contribuinte brasileiro, não serve para respaldar, avalizar as injustiças praticadas pelos detentores do poder político e econômico. Pelo contrário, é concebido justamente para funcionar como último alicerce e pilar de proteção da sociedade contra todo este tipo de violação.

Há quem encontre boas justificativas para que a Justiça sirva justamente para perpetuar situações ilegais e imorais das quais se beneficiam, mas se esquecem que podem vir ser vítimas das consequências dessa lógica subversiva, especialmente no dia que for vítima de um latrocínio ou lhe faltar um tomógrafo para diagnosticar uma hemorragia cerebral, num acidente que, inconsciente, o levou ao SUS.  Sim, parece inacreditável, mas a miséria imposta a um povo pela corrupção acaba alcançando até quem se acha intocável.

Parece nonsense escrever linhas para tratar do óbvio, mas torna-se indispensável quando o comum é o certo ser chamado de errado e a injustiça ganhar rótulos de justiça. Que possamos ser compelidos a refletir sobre as sementes que estamos lançando, seja com nossa ação, apoio expresso ou, mesmo, nossa neutralidade e omissão. A colheita deste tipo de semeadura já está bastante nítida há algumas gerações.

Que sejamos obrigados a discernir quem é quem no processo da libertação ou permanência do Brasil na escravidão da corrupção. Que nossa mente seja renovada com responsabilidades e compromissos pessoais com a nação. Que nosso coração venha arder por uma Justiça que assegura o Estado de Direito e o bem comum. Que o nosso comportamento seja um reflexo deste propósito. Que consigamos assumir sacrifícios, responsabilidades e obrigações nesse sentido e abandonar as escolhas egoístas, as conveniências, os atalhos, os favorecimentos, as supostas benesses permitidas pelo Sistema de INJustiça. Que esta renúncia, consciente e intencional de cada brasileiro, nos permita usufruir do que é verdadeiramente Justo, do que é realmente Reto, dos Princípios da Administração Pública e de um Servir comprometido com todos, aproximando o Brasil das suas grandiosas potencialidades.

Link da publicação: https://www.migalhas.com.br/depeso/344529/procurar-a-justica-para-garantir-injustica

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Modesto Carvalhosa