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Todos sob o mesmo teto

Por Mário Mesquita, Valor Econômico

A conciliação do aumento das transferências sociais com o limite geral para os gastos é possível, ainda que requeira medidas compensatórias que exigem articulação entre governo e Congresso

O impacto da pandemia da covid-19, e consequente aumento das transferências sociais, intensificou o debate sobre o futuro do chamado teto de gastos, adotado em 2016. Antes de contemplar o dilema atual, vale recapitular porque o teto foi adotado. Entre 1997 e 2016, os gastos primários do governo federal cresceram, em média, ao ritmo de 6% ao ano acima da inflação, saltando de 14% para 19,9% do PIB. Esse crescimento foi financiado pelo aumento de taxação (a carga tributária saiu de 26,5% para 32,2% do PIB) e da dívida.

Em 2016, a dívida pública brasileira já tinha alcançado um patamar extraordinariamente elevado, para uma economia emergente, e o mesmo pode se dizer da carga tributária – 78,3% e 32,2% do PIB, ante 56,3% e 22,6% do PIB de média na América Latina e 46,2% e 20,5% entre os emergentes, respectivamente.

A conciliação do aumento das transferências sociais com o limite geral para os gastos é possível

A discussão dos efeitos da grande e persistente expansão fiscal brasileira é tema para estudos aprofundados, idealmente incorporando análise contrafactual, mas, para nosso propósito, basta notar que aumentos adicionais de despesas agregadas vão provavelmente esbarrar na resistência da sociedade, e seus representantes eleitos, a aumentos adicionais da carga tributária. Sendo assim, irão provavelmente levar a um crescimento da já muito elevada dívida pública (isto é, estaríamos passando a conta, uma vez mais, para os jovens, crianças e futuras gerações).

Consideremos os dados da questão fiscal. O programa Bolsa Família, que consta do projeto de lei orçamentária (PLO) para 2021, atende 14 milhões de famílias, com o pagamento médio de R$ 200 por mês, e custa 0,4% do PIB por ano (R$ 34 bilhões). O auxílio emergencial, grosso modo, um pagamento de R$ 300 por mês (atualmente) para 60 milhões de pessoas, custaria 2,7% do PIB por ano. Dados os valores envolvidos, a simples perenização do auxílio emergencial, com a cobertura e pagamento médio existentes, parece exceder a capacidade fiscal do Estado.

Isto não significa que não existam alternativas para reforçar nossa rede de proteção social. Uma seria expandir o Bolsa Família, tanto no que tange aos pagamentos quanto ao escopo. Para fins dessa coluna, vamos considerar um aumento do pagamento mensal do Bolsa Família de R$ 200 para R$ 300, e a cobertura de 14 milhões para 19 milhões de famílias. Isso implicaria um aumento de gastos de R$ 35 bilhões por ano, ou seja, seria equivalente a dobrar o dispêndio com esse programa. Para compensar esse aumento de despesas, o governo poderia considerar três grandes blocos de medidas: a racionalização de benefícios sociais (sem prejuízo de sua efetividade), contenção de gastos com o funcionalismo e privatização de estatais dependentes do Tesouro.

Limitação do acesso ao abono salarial (ainda que com impacto a partir de 2022), incorporação do seguro defeso ao Bolsa Família e combate a irregularidades no BPC e aposentadoria rural poderiam contribuir com cerca de R$ 14 bilhões. Medidas de contenção dos gastos com o funcionalismo também ajudariam: reposição parcial de servidores aposentados com salários menores, regulamentação efetiva do teto de remunerações, vedação da contagem de tempo para progressão de carreiras poderiam ajudar em cerca de R$ 11 bilhões. Estatais dependentes do Tesouro são aquelas (muitas) que apresentam déficits recorrentes que são cobertos pelo acionista controlador permanentemente.

No curto prazo, privatização ou transferência para entidades subnacionais, e empresas hospitalares, de transportes, comunicação e bélica poderiam gerar economias de R$ 3 bilhões. Diferentes combinações podem ser contempladas.

Se, por exemplo, for inviável racionalizar os benefícios sociais existentes, seria preciso uma ação mais intensa no controle de gastos com o funcionalismo e/ou aceleração na venda das estatais dependentes. Estas, em particular, cobrem uma vasta gama de setores, desde a produção de circuitos integrados à pesquisa agropecuária, passando por hospitais e chegando até a engenharia nuclear, a um custo anual de R$ 17,5 bilhões (ou metade do gasto com o Bolsa Família).

Esses conjuntos de medidas requerem mudanças legislativas e até constitucionais, o que demanda um grau de articulação dentro do governo, e entre o mesmo e o Congresso, que é bastante desafiador – dado o calendário, talvez uma solução definitiva só seja alcançada em 2021. Nesse contexto, talvez o cenário mais favorável no curto prazo, do ponto de vista da percepção sobre a sustentabilidade da dívida dos investidores em títulos públicos, seria uma aceleração das negociações políticas em torno das medidas que favoreçam a ancoragem de médio prazo, como a reoneração setorial da folha de pagamentos (R$ 7 bilhões por ano) e a vedação de reajustes nominais e reais dos vencimentos de servidores e salário mínimo, respectivamente (R$ 17 bilhões por ano), que poderiam ser implementados pela aprovação da chamada PEC emergencial.

Em suma, a conciliação do aumento das transferências sociais com o limite geral para os gastos é possível, ainda que requeira medidas compensatórias que exigem articulação entre o governo e o Congresso. As alternativas são tentar voltar à tradição de simplesmente gastar mais e taxar mais, ou, mais arriscado, contar com a eterna paciência dos investidores.

Link da publicação:

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/todos-sob-o-mesmo-teto.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita