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Processos que frustram

O GLOBO

O evento da semana é a invalidação dos processos de Lula, por decisão de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Fachin não inocentou Lula, ao contrário do que o ex-presidente disse em seu discurso; nem tratou desse tema.

O motivo da invalidação é outro: a Justiça Federal de Brasília, e não de Curitiba, é que seria competente para receber as denúncias criminais contra Lula, dirigir a produção das provas e, ao final, absolver ou condenar.

Fachin mandou começar de novo na primeira instância em Brasília. Os processos de Curitiba não valeram.

Muita gente ficou desconcertada. Como assim, não valeram? A invalidação veio quase 5 anos após o início do primeiro processo. Nesta altura, o réu já foi condenado e a sentença confirmada pelo tribunal regional.

Lula passou nada menos que 580 dias preso. Será que devia? Quem achar pouco e fácil, lembre-se do que temos vivido nesses 365 dias de quarentena, uma espécie de prisão sanitária semiaberta — bastante flexível, aliás. Prisão fechada é o inferno.
Mas como é possível reescrever a história depois de os processos criminais de Lula terem ido tão longe? As redes sociais, forçando um pouco a ironia temporal, relembraram as peripécias de Marty McFly no filme “De Volta para o Futuro”.

E perguntaram: se é desse jeito que o mundo jurídico funciona, a Justiça de Portugal poderia invalidar a chegada de Cabral ao Brasil? Afinal, em 21 de abril de 1500 ele devia estar nas Índias e não tinha nada a fazer na costa da Bahia.

A invalidação do caso Cabral (o navegador, não o ex-governador) teria consequências sobre nossos 5 séculos de história jurídica? Tornaria o Brasil ilegal, ao menos para os portugueses? Eles poderiam exigir de volta o acervo da Real Biblioteca, que veio para o Rio de Janeiro em 1808 quando a corte de D. João VI fugiu para cá e acabou formando nossa magnífica Biblioteca Nacional?

As perguntas mostram o espanto do mundo real ante este mecanismo inventado por juristas: a invalidação. Ela tenta desfazer ou compensar os malefícios gerados por ato jurídico irregular do passado.

Como os juristas não operam no plano da ficção científica, invalidação nenhuma pode mexer no passado, que está vivido. O que ela tenta é uma correção jurídica, no que for possível. Uma medida para valer daqui para a frente. Invalidação não resolve tudo. Faz o que pode.

Se a invalidação do processo de Lula for confirmada (o plenário do STF ainda vai decidir), a inelegibilidade, que também resultara da condenação, estará extinta. A vida política de Lula ficará liberada para o futuro. Mas seus 580 dias em Curitiba estarão para sempre perdidos. Liberdade privada desperdiçada, talvez injustamente. Outra perda: o trabalho de anos do sistema de Justiça, envolvendo polícia, ministério público e juízes. Recursos públicos desperdiçados.

Invalidações no processo penal são bem frequentes. Há poucas semanas, um ministro do Superior Tribunal de Justiça também anulou, por razões formais, a quebra do sigilo bancário de Flávio Bolsonaro, que havia sido feita por ordem judicial. Voltou tudo para trás. Trabalho perdido.

Atos defeituosos de juízes penais têm de ser invalidados. País civilizado não faz linchamento. Por isso, o direito de defesa, garantido por regras processuais, é muito relevante. Se a Justiça entende que Lula e Bolsonaro tiveram seus direitos de defesa violados, deve mesmo invalidar o que estiver errado.

Aqui de fora, cada um de nós pode achar o que quiser, mas a competência para resolver isso é dos juízes. Eles não são uma maravilha, como sabemos. Mas não há sistema melhor que o de Justiça para resolver esse tipo de coisa. Cabos, soldados, capitães, milicianos e militantes não são substitutos razoáveis.

Mas qualquer sistema de Justiça pode ser melhorado. E o nosso, temos de reconhecer, é muito disfuncional. São dois defeitos bem sérios. Um é o excesso de estímulos à judicialização. Outro, o casuísmo.

Ao invés de priorizar vacinas, bons serviços públicos, prevenção da corrupção e participação cidadã nas decisões públicas, nosso Estado aplica cada vez mais tempo e dinheiro para oferecer ilusões judiciais em relação a tudo isso. Hoje, processos imprudentes ou espertos, questões de bagatela e muitas disputas políticas desnorteiam nossa Justiça.

O Brasil está atulhado de processos de todo tipo, boa parte inútil. Precisamos mais filtros.

Se houvesse menos processos a infernizar a pauta da Justiça brasileira, não haveria desculpa para ela gastar 5 anos para resolver em definitivo quem é competente no caso Lula. Afinal, este é o primeiro tema de qualquer processo. Um sistema judicial que adie uma decisão assim por tanto tempo vai acabar desperdiçando a liberdade das pessoas e os recursos públicos.

O outro problema é o casuísmo. Se Sérgio Buarque de Holanda tivesse se dedicado ao Direito, poderia ter usado sua famosa figura, o “homem cordial”, para descrever a atual geração de agentes públicos do nosso sistema de Justiça.

É impressionante o número de agentes que tiram suas opiniões de um “fundo emotivo extremamente rico e transbordante”; mantêm com o Direito “uma intimidade quase desrespeitosa”, um culto “de superfície”, de pouca “devoção”; e que se consideram livres para “se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontrem em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades”.

O Brasil precisa mais regra geral e menos voluntarismo casuístico. STF e STJ têm de se dedicar a produzir, para os demais níveis da Justiça, orientações que sejam efetivamente gerais, claras e estáveis. Elas têm de funcionar tanto em 2016 como em 2021, funcionar para Lula e para Bolsonaros, para os poderosos e para os humildes.

Alguma coisa vai dar errado se os ministros dos tribunais superiores gastarem seus dias tomando e mudando decisões individuais em casos concretos. A Justiça não melhora em nada trocando um arroubo de Curitiba por outro de Brasília.

*Carlos Ari Sundfeld é professor titular da FGV Direito SP

Link original da publicação: https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/carlos-ari-sundfeld-processos-que-frustram.html

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Sobre o autor

Carlos Ari Sundfeld