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Atolados entre tratores superfaturados e falta de creches

NEXO

É evidente o fracasso do governo na gestão da pandemia. Estamos nos aproximando de meio milhão de pessoas mortas pela covid-19, e convivemos com uma lentidão exasperante no ritmo de vacinação, por falta de imunizantes. Exceção feita a poucas cidades que enfrentaram surtos agudos da doença, nunca foi adotado um lockdown no país e, na ausência de coordenação nacional, os governos regionais se limitaram a administrar a escassez de leitos de UTIs, antecipar feriados e fechar segmentos do setor de serviços para evitar aglomerações. Novas ondas de contágio e mortes podem acontecer enquanto toda a população não for vacinada. Ainda assim, dentre os emergentes, o Brasil foi o país que mais gastou recursos públicos durante a pandemia, gerando entre 2020 e 2021 um deficit acumulado estimado em 14% do PIB (Produto Interno Bruto), o que provocou um grande salto na dívida pública, que hoje atinge 90%, com tendência de crescimento

Gastou-se muito, mas gastou-se mal. As famílias mais vulneráveis e as pequenas e médias empresas dos setores mais afetados pela pandemia permanecem desassistidas, as desigualdades se acentuam. Na raiz do erro, está a incapacidade de o governo admitir e atuar de acordo com o fato de que estamos todos em um mesmo barco. Dividir a população, como estimula, com afinco, o governo, leva alguns a remar para frente e outros para trás, nos deixando no pior dos mundos: o país mais pobre, com muitas mortes que poderiam ser evitadas.

No lugar de ações visando o bem comum, com transparência e eficiência, a pandemia tem sido usada como cortina de fumaça para esconder objetivos escusos, gastos desnecessários e manobras orçamentárias. Bilhões estão sendo distribuídos sem transparência (pelas emendas “secretas”, as chamadas RP 9), com indícios de compra de tratores e máquinas agrícolas superfaturadas para garantir apoio do centrão ao presidente. Enquanto isso, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) não tem verba para o Censo Demográfico, que deveria ter sido feito em 2020, e não o será nem em 2021. Dessa maneira, a eleição de 2022 ocorrerá sem que se saiba qual o real impacto das políticas públicas adotadas desde 2011, e qual o tamanho do estrago feito pela pandemia no país. Conveniente para o governo, e conveniente para o PT; a ausência de dados dificultará a discussão das omissões durante seus governos.

No entanto, com ou sem os dados, a população continua à espera de soluções para os seus problemas, que, se já eram abundantes, aumentaram ainda mais com a pandemia. Ao contrário de outras recessões, em 2020 as mulheres perderam mais empregos do que os homens, tanto no Brasil como na maior parte dos países. O fenômeno vem sendo chamado de “she-cession”, no lugar de “recession” (recessão), termo que, além de sugerir uma recessão que afetou mais as mulheres, também indica que elas foram levadas a renunciar aos seus direitos e conquistas. Estudo do FMI (Fundo Monetário Internacional) com base em 30 economias avançadas e 8 emergentes mostra que em 68% da amostra as mulheres perderam mais empregos que os homens no segundo trimestre de 2020, aumentando o gap de gênero.

O fechamento de escolas e creches para conter a disseminação do vírus, obrigando as mães a abandonarem seus empregos e cuidarem dos filhos em casa é a causa mais evidente da saída das mulheres do mercado de trabalho. Mas, além disso, o emprego feminino está concentrado em setores onde há maior interação pessoal (como lojas, hotéis, restaurantes, transporte aéreo, turismo, etc, que nos EUA empregam 66% das mulheres), e que foram mais fortemente afetados pela necessidade de distanciamento social. O oposto ocorreu, por exemplo, no setor de construção civil, pouco afetado, e que emprega poucas mulheres.

É sabido que países com oferta elevada de creches exibem maiores taxas de participação das mães no mercado de trabalho por ajudá-las a encontrar um equilíbrio mais satisfatório entre casa e carreira profissional. Há muito a ser feito no Brasil a esse respeito. Segundo dados da Pnad Contínua, em 2019 a taxa de frequência de crianças de até 3 anos em creches era de apenas 35,6%, enquanto na média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) chega a 50%. Não surpreende que o nível de ocupação das mulheres (entre 25 e 49 anos) em domicílios em que há crianças pequenas (até 3 anos) atinja 54,6%, contra 67,2% quando não há crianças nessa faixa etária. Já a situação dos homens nas mesmas circunstâncias é, respectivamente, de 89,2% e de 83,4% (gerando um gap de gênero de 34,5 pontos percentuais no primeiro caso e de 16,2 pontos percentuais no segundo).

Isso ocorre na presença do crescimento contínuo do nível de instrução das mulheres, que já superou o dos homens. Em 2019, 40,4% dos homens com 25 anos ou mais não tinham instrução ou haviam cursado apenas parte do ensino fundamental, enquanto entre as mulheres essa proporção era de 37,1%. Já entre os que completaram o nível superior, 15,1% eram homens e 19,4%, mulheres. Nem sempre foi assim, a escolaridade das mulheres aumentou nas últimas décadas: o grupo com 65 anos ou mais é o único em que é maior a proporção dos homens com ensino superior completo (10,8% contra 9,5%), e a maior diferença relativa (7,1 pontos percentuais) aparece no grupo com idade entre 35 e 44 anos, com 17,3% de homens e 24,4% das mulheres tendo completado o nível superior

A presença das mulheres nos cursos de graduação supera a dos homens não só nas áreas consideradas típicas de mulheres, como bem-estar (88%) ou serviços pessoais (77%), mas também em veterinária (68%), medicina (60%), comunicação e informação (59%), direito (55%) e negócios e administração (54%) (gráfico abaixo). Apesar da melhora no nível de instrução, a situação das mulheres no mercado de trabalho ainda reflete uma enorme desigualdade. Perde o país, uma vez que um importante investimento em capital humano se perde e não gera aumento da produtividade na economia.

Governos que não cuidam dos cidadãos perdem a fonte mais fundamental de legitimação. Gastos legítimos de recursos públicos não precisam, e nunca devem, ser “secretos”. As mulheres, mais da metade da população do país, continuam à espera de políticas públicas que lhes dê condições de trabalhar e cuidar dos filhos. Sem que haja creches, escolas em tempo integral e demais políticas públicas voltadas a permitir que as mulheres trabalhem, o Brasil perderá a contribuição que elas estão prontas a dar para o crescimento de um país mais justo e próspero.

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Sobre o autor

Cristina Pinotti