O GLOBO
Isto o Brasil ainda não testou: abrir e descomplicar, para crescer e servir a todas as pessoas. Pode ser nosso caminho. Mas depende do direito público.
Normas sobre gestão pública são muito necessárias. Mas não quaisquer normas. Para funcionarem, normas têm de ser fáceis de cumprir e rápidas de rever. E têm de propiciar mais aprendizados do que processos.
Por não observar essas diretrizes, e fazer pouca autocrítica, nosso estado se tornou incrivelmente confuso. Ele trabalha demais para si mesmo. Sobra pouca energia para atender toda a sociedade.
Órgãos de regulação editam normas complicadas, sem considerar seus efeitos. Ampliam sem cessar as exigências e controles sobre os particulares. E depois mobilizam o melhor dos agentes públicos na luta inglória contra o estoque burocrático que criaram.
As normas públicas não oneram só os particulares. A própria máquina estatal está presa a seu cipoal de exigências e controles, em geral múltiplos, ambíguos e caros — um conjunto que não faz grande sentido.
São tantos os agentes que as polícias militares mantêm sentados em mesas de escritório! Eles poderiam estar servindo nas ruas. Mas estão envolvidos com coisas enroladas, inventadas no passado por rotinas ou normas cuja utilidade nunca foi medida.
Controladores são incentivados a, sem pensar nos impactos, abrir processos bem intrincados. Por isso, secretarias de meio ambiente e de saúde precisam ter equipes técnicas desproporcionalmente grandes. Tudo para responder às demandas artificiais da loteria do controle público — em que também a Justiça, o ministério público e os tribunais de contas acabam enredados. É claro que vai faltar gente para cuidar da proteção dos rios e dos doentes.
Advocacias públicas, cada vez maiores e mais caras, gastam o maior de seus esforços tentando libertar a administração pública dessas imensas confusões jurídicas do passado. Resta pouco tempo para apoiar os gestores que têm de cuidar da população e do futuro.
O Estado consome cada vez mais recursos para lidar com processos infindáveis, muitos instaurados por inércia ou por meras suspeitas de princípio contra inovações e contra agentes públicos. Um bocado desses recursos poderia estar nos museus e nas salas de aula.
Autoridades tributárias passam grande parte do dia imaginando meios complicados de arranjar dinheiro só para manter aberta a máquina pública. Ao invés disso, poderiam estar medindo a eficiência e a eficácia dos gastos públicos e das inúmeras renúncias fiscais.
Em meio à multiplicação de estranhezas, uma cultura jurídica esquizofrênica vai se desenvolvendo. Juízes, controladores e gestores, que não enxergam muita coerência nas normas e práticas, sentem-se livres para inventar interpretações exóticas ou conflitantes, e com isso ampliam a confusão jurídica.
Nosso mundo público olha em excesso para dentro, está ligado demais ao passado e, pior, ficou ininteligível.
Se quisermos mudar a situação, será preciso cobrar mais resultados reais, fazer a máquina trabalhar mais para fora, servir mais às pessoas comuns. Para isso não existe fórmula mágica, nem bala de prata. Ajustar as ações públicas é esforço de todas as gerações. Reinventar o Estado será sempre necessário. A reforma é missão pública permanente.
Mas antes de quaisquer mudanças no conteúdo das normas públicas (sobre contratações ou RH do Estado, por exemplo) a discussão tem de ser sobre o modelo jurídico em que as novas decisões serão impressas.
Na reforma da ação do Estado — segundo as ideias, necessidades e possibilidades do presente — qual modelo jurídico será capaz de gerar menos complicações, menos dificuldades para quem vai lidar com ele, menos processos, menos ineficiências, menos custos?
Parte da resposta está no minimalismo constitucional e legal. O direito público tem de incentivar o experimentalismo e a inovação em todas as áreas da gestão do estado. Com nosso excesso de regras na Constituição e nas leis, temos aumentado demais as amarras e o peso do direito, diminuindo assim a capacidade de adaptação constante da ação pública.
Andou mal, portanto, o governo, ao enviar ao Congresso um enorme e estranho projeto de reforma constitucional do RH do Estado, a PEC 32. A Constituição, cuja mudança é bem difícil (exige 3/5 dos votos dos senadores e deputados), não é lugar para tratar de recursos humanos. O governo tem novas ideias sobre gestão de pessoas no setor público? Ótimo, vamos abrir espaço para testá-las.
Mas não podemos transformar a Constituição em um infindável manual de RH. O correto seria desconstitucionalizar regras que a Constituição já tem sobre esse tema, em especial as que impedem novas experiências. Se, ao invés da Constituição, o tema for tratado em leis, mais fáceis de mudar, será menor o risco de comprometermos o futuro com confusões constitucionais que inventarmos agora.
Agiu mal, também, o Congresso ao aprovar a nova lei nacional de contratações públicas, que acaba de entrar em vigor. São quase 40 mil palavras com velhas complicações, exigências e limitações, cujos impactos reais ninguém mediu por inteiro até hoje. Há também novas apostas românticas, que talvez não deem muito certo na maioria dos estados e municípios do país.
A nova lei de contratações públicas teria feito melhor se tivesse organizado um Conselho Nacional que, sempre orientado por um espírito simplificador, pudesse editar regulamentos administrativos sobre contratações públicas, com validade para toda a administração brasileira.
Regulamentos são mais fáceis de mudar do que as inúmeras regrinhas de uma lei. Com eles, temos mais espaço para experiências, inovações e correções na gestão pública. Podemos nos livrar das complicações tão logo as descubramos. Não ficamos condenados a embaralhar sempre mais o direito, na esperança de melhorá-lo.
Mas não basta diminuir o tamanho da Constituição e das leis. As novas normas têm que ser claras, precisas, simplificadoras, autorizar experiências e impor a avaliação da ação administrativa. Não têm que moldar detalhes das ações da gestão pública, nem ficar almejando o máximo de punições.
A lei de liberdade econômica, improvisada pelo governo em 2019, gerou mais expectativas do que resultado. Não é de estranhar: o texto era amador, apressado, inextricável. Não levou a sério o dever de clareza e simplicidade.
Para ir mudando com qualidade, será preciso ter em mãos informações muito abrangentes sobre a realidade que vem depois das normas. Isso será inviável sem a avaliação obrigatória e permanente das dificuldades, custos e consequências da aplicação delas.
Nosso modelo jurídico para a gestão pública tem de ser construído com normas que sejam mais experimentais e mais fáceis de mudar. Elas têm que focar em avaliações de resultados. Não é produtivo ficar aterrorizando com mais sanções as pessoas que se enredem nas complicações normativas.
Em suma, ao fazer reformas jurídicas, a lei é preferível à Constituição, o regulamento administrativo é preferível à lei, o experimental é melhor que o permanente. O incentivo é melhor que a imposição, a simplificação é melhor que a complexidade, a análise prévia de impacto é melhor que a intuição. Precisão e clareza são indispensáveis. E mais: a avaliação de resultados vai sempre funcionar melhor do que qualquer ameaça de sanção.
Link da publicação: https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/carlos-ari-sundfeld-descomplicar-o-direito-publico-e-o-brasil.html
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