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Uma homenagem a José Marcio Rego aos 65

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Texto preparado para o livro-homenagem aos 65 anos do José Marcio Rego

Intelectual engajado, agregador por natureza, José Marcio foi sempre uma voz pregando o diálogo e a troca de ideias entre economistas dos mais diversos matizes. Simpatia, senso de humor, entusiasmo pelo conhecimento — não há como não ficar cativado pela figura do Zé Marcio. Amigo de todas as horas, pintor nas madrugadas, cantor de tango, samba e canções românticas italianas, piadista, pródigo nos elogios, sempre com novos projetos, Zé Márcio circula com desenvoltura nos mais diversos ambientes.

Uma das marcas da personalidade do Zé Marcio é sua presença de espírito. Respondendo a uma pergunta do Jô Soares, que mantinha na época o mais popular programa de entrevistas do Brasil, afirmou que, quando tinha dúvidas sobre sua inteligência, lembrava que havia se casado com a Dona Marisa. Ela estava na plateia, as câmeras focalizaram nela e a plateia irrompeu em aplausos. Zé Márcio causou inveja e suspiros em 100% da audiência feminina do programa: que mulher não gosta de receber uma declaração pública de amor assim?

Mais tarde, Zé Marcio me contou que se inspirou na hora no Sérgio Buarque de Holanda, que publicamente declarara quanto devia à sua mulher, a mãe do Chico. E há outras semelhanças entre eles. Feito Sérgio Buarque, Zé Marcio tem paixão pelos livros. Uns têm paixão amorosa, outros têm paixão pelo álcool, outros têm paixão pelo jogo, nos conta Antonio Cândido neste vídeo, e há os que têm paixão pelos livros. Sérgio Buarque driblava a mulher, preocupada com o excesso de livros, entrando furtivamente na casa pela cozinha para deixar os livros com a babá. Só depois, já com as mãos abanando, tocava oficialmente a campainha de sua própria casa. Zé Marcio, por sua vez, transformou um carro velho em um apêndice da sua biblioteca. Com a casa transbordando de livros, tratou de viabilizar uma válvula de escape automobilística. O carro ficava parado na garagem, bateria descarregada e sabe-se lá se tinha alguma gasolina. Uma biblioteca potencialmente ambulante.

Mas minha história preferida com o Zé Marcio foi quando, ainda no BTG Pactual, pensei em abrir uma filial no Paraguai. Risco de crédito historicamente baixo, terras férteis para o plantio da soja e escoamento fácil pelo rio da Prata, o país parecia oferecer muitas oportunidades para um banco de investimento. Pois não é que o Zé Marcio tinha conexões paraguaias? Rapidamente arranjou um almoço com Don Antonio Vierci, um dos principais empresários locais. Do almoço rumamos para uma conversa com o presidente Horacio Cartes, recém-eleito, mas ainda não empossado. Cartes nos recebeu em sua residência, com pompa e circunstância. A conversa foi animada, se alongou e lá pelas tantas, preocupado com o trânsito até o aeroporto, fiz menção de sair. Mas Cartes continuou falando da política econômica que pretendia implantar no Paraguai — muita amizade com o Brasil da presidente Dilma, mas vamos seguir os caminhos do Chile, não os dela, me explicou com um jeito malandro. Ao final da conversa, tratou de me tranquilizar: “No te preocupes, amigo, no perderás el vuelo”.

Foi a maior vergonha que já passei. Cartes nos providenciou um confortável e possante sedan para nos levar ao aeroporto. Não sei se o carro era dele ou da Presidência. O fato é que o carro zarpou a toda velocidade. Batedores à nossa frente brecavam o trânsito e fechavam ruas para que chegássemos o mais rapidamente possível. Parecia mais um presidente fugindo de um ataque terrorista do que dois brasileiros que só queriam não perder o voo de volta. Ainda bem que o carro tinha os vidros escurecidos. Fomos recebidos pelo pessoal da imigração logo na entrada do aeroporto e conseguimos milagrosamente embarcar. A decolagem providencialmente atrasou um pouquinho…

Como melhor homenagear seus 65 anos?

Se Zé Marcio fosse um acadêmico tradicional, sisudo, daqueles que só se comunicam com seus pares através de seus escritos, a homenagem teria que ser um artigo inédito para seu Festschrift. Mas Zé Marcio é antes de mais nada um conversador. Ninguém melhor do que ele para conduzir e editar os dois volumes das “Conversas com economistas brasileiros” e das “Conversas com filósofos brasileiros”. E sempre com um olhar gentil para a obra daqueles que deram o melhor de si para fazer progredir o conhecimento. Foi pensando no Zé Marcio conversador que resolvi contar uma história para os leitores deste livro. A história da Pensão Aridaregala.

Zé Marcio queria organizar um grupo de estudos comigo desde a publicação do “Larida”, o texto escrito em conjunto com André Lara Resende em 1984, que dez anos mais tarde se tornaria a base conceitual do Plano Real. Publicou o “Larida” numa coletânea da Paz e Terra por ele editada em 1986. Mas a ideia do grupo de estudos só tomou tração após um debate realizado no auditório da “Folha de S. Paulo” em dezembro de 1997.

O debate havia sido marcado para marcar o lançamento de outra coletânea, também organizada pelo José Marcio, chamada “Retórica na economia”. Editor infatigável, essa era, na verdade, a sua segunda coletânea sobre o tema. Meu artigo “A história do pensamento como teoria e retórica”, publicado originalmente em 1983 como o texto para discussão do Departamento de Economia da PUC-RJ, já constava da primeira, mas Zé Márcio resolveu publicá-lo de novo na segunda coletânea, de tanto que gostou dele.

Pois bem, a segunda coletânea sobre retórica continha também um texto do Bento Prado Jr. Zé Marcio, seu amigo de longa data — lembro que volta e meia pegava o carro e dirigia até São Carlos conversar com ele — convenceu-o a participar do debate no auditório da “Folha de S. Paulo”. Auditório surpreendentemente cheio, ficamos, Bento Prado e eu, conversando sobre o tema, com a mediação do Fernando de Barros e Silva, na época jornalista da “Folha”. Foi uma conversa divertida, ele desenterrando raízes neokantianas do meu pensamento, e eu comentando as reticências dele quanto ao reconhecimento da dimensão retórica das ciências humanas. O debate rolou solto e terminou num jantar numa pizzaria apreciando um Miolo tinto, o que de melhor havia na produção nacional na época. Quando estávamos indo embora, Zé Márcio perguntou: “Persio, que tal reeditarmos a Pensão Humaitá?”.

Foi ali que surgiu a Pensão Aridaregala. No paralelo dos nomes, havia uma graça, típica do Zé Marcio. A Pensão Humaitá ficou famosa pelo exercício da arte da conversa e pelo saber viver bem. Yan de Almeida Prado, um dos homens mais ricos de sua época, abria seu casarão, na esquina da Brigadeiro com a Humaitá, aos sábados para os amigos. Os almoços duravam a tarde inteira, regados a vinhos Bordeaux e champanhes de primeira, mesclando assuntos sérios e mundanidades. A Pensão Humaitá, um capítulo da efervescente cena cultural paulistana do início do século passado, começou nos anos 30 e se estendeu por décadas a fio.

Já a Pensão Aridaregala, de pensão não tinha nada. No lugar da suntuosa mansão de uma das famílias mais ricas da cidade, a Pensão Aridaregala acontecia no meu apartamento. As reuniões eram no sábado pela manhã. Começavam às 11, um horário civilizado, e nunca invadiam o horário do almoço. O regalo do Aridaregala era, na verdade, frugalíssimo: amendoim, castanhas, água e suco de laranja, café, muito café, pão de queijo e alguns outros petiscos. O número de participantes, 10 ou 12 no máximo, era limitado pelo tamanho da mesa da sala onde nos reuníamos. E, se não bastassem tantas diferenças, havia sempre uma pauta previamente anunciada, um texto ou um livro, para evitar que a conversa divagasse em demasia.

Nem preciso dizer que foi o Zé Marcio quem batizou nosso grupo de estudos e debates de Pensão Aridaregala. Além da ironia, o nome fazia jus aos participantes. Na época em que começamos, final de 2001, o Zé Marcio andava para cima e para baixo com o Paulo Gala, seu pupilo e também orientando do Luiz Carlos Bresser Pereira. 2 e 2 são 4, Rego e Gala são regala, me explicou.

A Pensão era uma combinação improvável. Zé Marcio e eu temos formações e visões do funcionamento da economia distintas. Sou ortodoxo demais para ele; ele demasiadamente desenvolvimentista para mim. Também na política nacional nossas opiniões divergem muitas vezes. Ele, por afinidade, circula em outro universo de interlocução, mas sua capacidade de transitar nos mais diversos ambientes é ímpar. Em um vídeo humoristicamente denominado como “Regonomics”, Zé Marcio nos conta dos intelectuais que o influenciaram. Eu lá estou, descrito como uma força da natureza apesar de ser conservador, nas palavras dele, mas lá constam também muitas outras forças da natureza, progressistas, por supuesto, que pouco ou nada tem a ver comigo. Zé Marcio é um mestre da arte da conversa!

A Pensão Aridaregala completará, no final de 2021, seus 20 anos de existência. O extraordinário, num país onde raramente grupos de discussão formados à margem das instituições sobrevivem por longo tempo, é que a Pensão Aridaregala se reúna até hoje. As sessões se tornaram menos frequentes ao longo do tempo, mas, à exceção do período em que morei em Londres, nunca deixamos passar um ano em branco. Nem em 2020 paramos. Houve uma sessão presencial, ainda em fevereiro, na qual Fernando Haddad discutiu conosco o seu “Brasil: uma hipótese em construção”. Depois dela veio a epidemia e tudo mudou, mas, mesmo assim, fizemos uma sessão virtual da Pensão em agosto, com Bolívar Lamounier discutindo o “Teodicéia brasileira”.

Ao longo de tantos anos, a vida foi nos levando a temas diferentes, e os participantes também mudaram. De constantes mesmo, desde a partida, só Zé Marcio e eu. No começo, tudo gravitava em torno da filosofia da ciência, tópico que nos fascinava. Tivemos uma discussão longa sobre um livro do Gilles-Gaston Granger, “Méthodologie Économique”, que havia descoberto, ainda como aluno, numa das prateleiras da biblioteca da FEA-USP. Publicado em 1955, até hoje me impressiona; o fato de ter sido escrito em francês e por um filósofo infelizmente fez com que nunca ingressasse nas listas de leitura de economia. Quine, Hempel, Friedman no seu “Essays in Positive Economics”, todos foram objeto de alguma sessão do grupo. Normalmente eu a iniciava com uma breve exposição e comentários, para quebrar o gelo e abrir a conversa. Até Niklas Luhmann mereceu uma sessão, em parte motivada por um artigo sobre diferenciação social que eu havia escrito para uma coletânea de artigos publicada por ele na Alemanha.

Tivemos reuniões inspiradas, mas, de quando em quando, nos metíamos a conversar sobre o que não entendíamos. Lembro de uma época em acabamos indo para a fenomenologia e marcamos uma reunião sobre um texto do Husserl. Eu mesmo fiquei de fazer a exposição, mas, já marcado demais pela filosofia analítica do mundo anglo-saxão, e num trem de leitura do Bernard Williams, acabei me atrapalhando. Husserl me exasperava. Lia e relia o texto, à busca de um fio condutor que me possibilitasse apreender as ideias. Acordei cedinho no sábado marcado para a discussão para uma última leitura, quem sabe dela surgiria algum lampejo no frescor da manhã. O fato é que levei um baile da “redução transcendental”. Vexame não houve porque ninguém no grupo estava muito melhor do que eu.

Aos poucos fomos mudando o foco. Da filosofia fomos para a literatura, discutindo um texto do Bento Nunes sobre a Clarice Lispector. O mais interessante, no entanto, veio depois. Nossa geração começava a publicar livros, e as sessões passaram a ser sobre seus livros, sempre com a presença do autor. Com exceção do Eduardo Giannetti, nunca discutimos mais de um livro por autor.

Apenas duas das nossas reuniões foram gravadas, ambas da fase em que focamos na Escola de Frankfurt. Uma com Marcos Nobre discutindo seu livro “A dialética negativa de Theodor W. Adorno” e o “Discurso filosófico da modernidade”, de Habermas; outra com Jorge Grespan a propósito do seu recém-lançado “O negativo do capital”. Hoje, relendo a transcrição dessas duas reuniões, salta aos olhos sua natureza animada e espontânea, a riqueza e diversidade de pontos de vista. Em retrospecto, lamento não ter gravado ou no mínimo anotado as outras tantas reuniões que fizemos. Nos Estados Unidos, o sujeito faz qualquer coisa de notável, preside uma companhia, participa do governo, funda uma ONG e, ao deixar o cargo, cuida logo de escrever suas memórias e reflexões. Aqui, pela confiança excessiva na tradição oral e, porque não dizê-lo, uma certa preguiça, raros são aqueles que fazem um registro da experiência vivida. Que os diários da Presidência do Fernando Henrique sirvam de exemplo para todos nós.

Ao longo de seus 20 anos, a Pensão Aridaregala foi mudando. Era um grupo de economistas, mas foi evoluindo para um grupo eclético de pensadores de extrações diversas. Começou focada na filosofia da ciência, mas foi se abrasileirando, centrada mais e mais em pensadores e/ou temas da nossa terra. Não foi algo planejado — simplesmente aconteceu. Se algo a caracteriza, ao longo de tantos anos e tantos temas, é a tolerância e o respeito genuínos pelo pensamento divergente, sempre na busca de um espaço de reflexão coletiva que nos permita entender o complexo mundo em que vivemos.

2021 será mais um ano da Pensão. No final de fevereiro, tivemos uma conversa virtual com o Roberto Schwarz sobre o “Seja como for: entrevistas, retratos e documentos”. Temos ótimos candidatos para as reuniões seguintes: “Corrupção, justiça e moralidade pública” do José Eduardo Faria; “Anel de Giges”, do Eduardo Giannetti; “Em busca da nação”, do Antonio Risério; BenjamiN Moser e suas biografias da Clarice Lispector e da Susan Sontag.

Duas décadas de conversas não são pouca coisa. Desde a partida, coube a mim escolher e convidar quem iria participar, assim como o texto ou livro a ser debatido, mas quem manteve acesa a vela da continuidade foi o Zé Marcio. Quando tardava muito para marcar uma sessão, o Zé Marcio me cobrava. Sugeria temas e nomes, um atrás do outro. Mais cedo ou mais tarde, das duas uma: ou uma de suas ideias acabava emplacando ou me ocorria um autor/tema que achava interessante. E uma nova sessão da Pensão ali se desenhava.

Parabéns, Zé Marcio! Viva!

Link da publicação: https://valor.globo.com/eu-e/artigo/persio-arida-uma-homenagem-a-jose-marcio-rego-aos-65.ghtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Persio Arida