Entrevistas

Affonso Pastore: “Vamos virar produtores de entropias”

Valor (publicado em 26/07/2021)

Affonso Celso Pastore vê riscos elevados tanto em reeleição de Bolsonaro quanto em vitória de Lula

A eleição de 2022 deverá ser dura, dificilmente contará com uma candidatura de centro e será disputada em uma situação econômica complicada. No próximo ano, a recuperação do pós-crise estará chegando ao fim, o que deve tornar mais evidentes desafios e fragilidades de cada país. Tanto a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, quanto uma vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) representam um risco elevado, tanto do ponto de vista de agenda econômica, como de lisura administrativa e de estabilidade política.

Esse é o cenário traçado pelo ex-presidente do Banco Central (1983-1985, governo Figueiredo) Affonso Celso Pastore, que se define, sem ironia, como “um otimista”. Para ele, Bolsonaro decepcionou ao não implementar a agenda liberal prometida na campanha – não avançou nas reformas, nem nas privatizações. E desperta o receio de que, dada a piora na sua popularidade, amplie gastos. Pastore não acredita em ruptura institucional, mas diz que o temor de que o país possa rumar para o autoritarismo existe na sociedade e afeta a percepção de risco na economia.

“Não acho que tenha um governo. Tem pessoas lá dentro exercendo funções sem um objetivo”

Lula inspira temor em Pastore. Ele reconhece que o ex-presidente é pragmático e não tem outro caminho para governabilidade que não seja o de centro, mas acredita que ele será limitado pelo PT. “Eu tenho dúvida de que, com a história do partido e a história dele, no segundo mandato le seja o Lula ‘paz e amor’, diz.

Essa percepção, de que há riscos em qualquer uma das candidaturas, é que explica a volatilidade recente no câmbio – e que levou o dólar de volta para cima dos R$ 5,20. E também justificaria uma alta de juros mais intensa, para algo entre 7,25% e 7,5%. “Não é o 6,5% que está na cabeça do mercado. Tem muito risco fiscal, de gastar mais, de aumentar o prêmio, de depreciar o câmbio”, afirma o economista.

“O que está à frente é o risco de medidas autoritárias e populistas que põem em perigo a estabilidade da economia”

A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida ao Valor por videoconferência:

Valor: Vimos os mercados financeiros passarem por uma nova rodada de deterioração. Em que medida esse movimento já reflete riscos políticos?

Affonso Celso Pastore: Embora a gente tenha temporariamente melhorado a perspectiva fiscal, um pouco pelo fator sorte – com a inflação e o crescimento acima do esperado – isso não tirou da frente os riscos fiscal e político percebidos pelo mercado. São dois riscos, e muito ligados um ao outro. O primeiro é o risco de como vai ser a eleição. Você vê dois candidatos mais fortes agora. Eu não sei se vai ter uma coalizão do centro, se o centro vai rachar, nada disso sei. O que está estabelecido hoje, com uma grande probabilidade, é que um candidato é o incumbente e o outro é o Lula. Parece ser uma eleição dura, disputada, em situação econômica complicada porque o mundo já vai estar desacelerando em 2022. O Brasil estará fechando o hiato do PIB, e aí passa a ter que crescer por crescimento potencial. O desemprego ainda está alto, e a popularidade do presidente caindo. A tentação do governo gastar mais em uma situação como essa é quase irresistível. Existe o risco dessa situação política se agravar e de você ter uma expansão fiscal mais descontrolada em um momento em que o mundo está enfrentando dificuldade de crescimento. O que se delineia para 2022 é um quadro difícil, complicado. E, embora eu esteja convencido de que parte desse movimento recente [de desvalorização e volatilidade] do câmbio seja, em grande parte, provocado pela variante Delta no mundo, esse risco local explica o fato de a reação no Brasil ser muito mais forte do que em outros países.

Valor: No caso do Lula, qual risco o senhor enxerga?

Pastore: Conheci dois Lulas. O Lula do primeiro mandato, que tinha o [Antonio] Palocci como ministro, tinha o Marcos Lisboa como assessor econômico direto do Palocci. Eles resolveram continuar no tripé de política econômica que havia sido feito a partir do momento em que o país entrou no regime de metas de inflação. Você tinha que ter meta de superávit primário, meta de inflação e deixar o câmbio flutuar. E o Lula resolveu seguir em uma continuidade do governo do Fernando Henrique Cardoso. A diferença começa a partir da crise de 2008 e 2009. Aí foi um “benchmark”. Dali em diante, a disciplina fiscal do país foi sendo erodida ponto a ponto. Lula chegou a transferir 10% do PIB por fora do orçamento para o BNDES. Ele aumentou gastos, as renúncias fiscais começaram a crescer, elas saíram de 1% do PIB para 3%, 3,5% do PIB.

Teve muitos movimentos na direção da indisciplina fiscal. Na sequência, veio a Dilma que elevou isso à enésima potência. Não posso dizer que o Lula tenha, ele sozinho, descarilhado o trem. Mas estou me referindo ao segundo Lula, que não tinha mais nenhum compromisso com austeridade, nenhum compromisso com regras de política econômica. Pergunto o seguinte: qual é o verdadeiro Lula, o primeiro ou o segundo? Aí você vai ter várias opiniões. Você vai ter gente que odeia tanto o Bolsonaro que vai dizer o seguinte: eu prefiro até o Lula 2. Você vai ter gente que odeia tanto o Lula que vai dizer que prefere o Bolsonaro. E vai ter gente que vai dizer o seguinte: era melhor que Deus nos desse um terceiro nome. Deus, eu não sei se é brasileiro, eu acho que ele não quer se meter nesse tipo de briga, eu adoraria que Ele interferisse.

Valor: Não sabemos se virá o Lula 1 ou o 2. Na sua visão, se o Lula vier com um discurso mais moderado, o mercado daria um voto de confiança a ele?

Pastore: O Lula, para ganhar a eleição, tem que se mover para o centro e para a direita, porque o outro está postado lá. Ele tinha que dizer o seguinte: eu vou privatizar, fazer uma reforma tributária melhor do que essa que está proposta, que é uma droga, cortar gastos, minimizar o custo da máquina pública. Teria que olhar para a distribuição de renda – ninguém deveria deixar de olhar para a distribuição de renda, que está piorando. No fundo, ele teria que se aproximar da eficiência econômica com distribuição. Mas o Lula não é o dono do partido, ele é o candidato. Ele tem suporte político para caminhar para o lado da eficiência econômica ou ficar numa versão populista? Eu tenho dúvida que com a história do partido e a história dele, no segundo mandato, que ele seja o Lula ‘paz e amor’.

Valor: Sobre o presidente Bolsonaro, ele foi eleito com uma agenda liberalizante, e o senhor menciona uma frustração em relação ao que se esperava quando ele foi eleito. No que ele mais decepcionou?

Pastore: Em primeiro lugar, eu não vi agenda liberalizante nenhuma, eu vi discurso. Eu vi o Paulo Guedes dando aula, como ele dava em Chicago.

Mas eu não vi nenhum projeto do governo que entrasse nessa direção. Ele montou uma secretaria de privatização, levou uma pessoa para ser secretário com plena liberdade para fazer a privatização. Acabamos saindo com a privatização mequetrefe da Eletrobras, cheia de defeitos. E tem gente que olha para aquilo, especialistas que entendem mais do que eu, dizendo que era melhor não ter feito, acaba custando mais. Era para ter feito um programa de reformas. Foi feita uma reforma da Previdência, que já estava em andamento. Depois foi feito o marco do saneamento. Mas reformas, no sentido de consolidar o controle de gastos, nenhuma. Aí ficamos discutindo 45 anos luz sobre reformas tributárias.

Valor: Qual a sua avaliação sobre a reforma tributária em discussão?

Pastore: Tem dois tipos de reformas que se podia imaginar dentre as muitas que estão mais maduras. Uma pega o imposto sobre bens e serviços – ICMS, IPI, Cofins etc – e transforma tudo em IVA, que tira distorções que geram a guerra fiscal, que geram acumulação de crédito que não são passíveis de serem rebatidos na exportação. Essa era uma, e morreu. Eu não ouço falar nela. A segunda reforma é a do imposto de renda. Essa é interessante, porque tem muitas coisas que precisam mudar. O Brasil tributa demais a empresa, o lucro, e não tributa o dividendo. Nós tributamos as empresas acima do padrão internacional. Só que existem empresas e empresas. Há uma parafernália de características, de condições que são específicas de empresas grandes, que fazem com que elas paguem um imposto muito menor do que a empresa que não tem acesso a esse tipo de assessoria, a esse tipo de canal de pressão no Congresso. Esse imposto tinha que ser neutro do ponto de vista de incidência. Tinha que pegar as pejotizações que dão privilégios aos médicos, advogados, economistas, que viram empresa que distribui o lucro. O projeto tem princípios bons mas ele entra com uma dosimetria de alíquotas que é maluca. Então, ou o ministro Paulo Guedes estava dormindo, e não viu, ou ele não entendeu, ou ele tentou negociar com grupos de pressão pondo isso como um bando de maldades. Como o Congresso está dominado pelo centrão que está fazendo a política do toma-lá-dá-cá, que é a política que o seu Bolsonaro disse que não ia fazer, vamos ter política de toma-lá-dá-cá, na qual é impossível corrigir distorções.

Valor: O que o senhor achou da reforma do imposto de renda?

Pastore: Gosto de alguns pontos da proposta, como por exemplo reduzir imposto na pessoa jurídica, taxar dividendos, mas ela tem que ser neutra do ponto de vista tributária. Estes princípios estão lá e são bons. Só que é o seguinte: não há nada que garanta que a incidência do imposto de renda para empresas é neutra, no sentido de tirar penalizações de um lado e privilégios do outro. Não tem nenhuma dosimetria que te garanta que esse imposto é neutro. Quando chegou na Câmara tinha aumento de carga tributária. Quando passou pela mão do relator e recebe e recebeu todos os grupos de pressão, já tinha queda de arrecadação de imposto. Quando você manda uma coisa que não foi bem trabalhada, não foi bem estudada, isto é falha do ministro da Economia. E acaba se tornando um monstrengo. E o meu medo é que, virando um monstrengo, acaba não sendo aprovado nada. Fica um monte de energia sendo gasta em torno de uma reforma que é simplesmente perdida. Nós vamos ser produtores de entropias. Eu acho que as falhas econômicas do governo Bolsonaro são enormes. Não é que tem uma decepção só. Para quem julgava que ele seria o líder de um governo liberal, ele está sendo líder de um não governo. Ponto.

Valor: Em 2018, a reação dos mercados foi clara a favor do Bolsonaro. O senhor acha que o mercado agora já cobrará mais resultados?

Pastore: Tem vários ângulos dos quais você pode olhar. O ângulo pelo qual olho é suficientemente aberto para incluir a visão de muitas pessoas. Independentemente de como você ganha dinheiro, quando você tem um governo que falha em várias faixas do espectro, essa impressão permeia a sociedade como um todo. A minha impressão é que quem votou no Bolsonaro está sentindo um grau de frustração absurdo, do ponto de vista do que se esperava lá atrás e do ponto de vista do que colheu. Não acho que tenha um governo. Tem pessoas lá dentro exercendo funções sem um objetivo, sem estratégia, sem diretriz, sem política econômica, enfim… acho que essa percepção é muito geral. Você sempre vai ter uma área ideológica, o sujeito que no fundo vê comunista em tudo quanto é lugar. Este ficará com ele

Valor: Existe uma preocupação sempre presente de quebra da institucionalidade, do Brasil seguir por um rumo autoritário. Esse risco está em seu radar?

Pastore: Tem uma corrente de desenvolvimento econômico, iniciada por Douglass North, seguida por Daren Acemoglu, por James Robinson, que diz que todo mundo sabe qual é a forma de se promover desenvolvimento econômico. Tem que investir, tem que aumentar produtividade etc. Por que tem países, que, sabendo disso, não conseguem crescer? Ou crescem até um ponto e param? Países têm instituições políticas e econômicas frágeis. Instituições que não permitem você canalizar as forças da sociedade na direção do desenvolvimento econômico e melhor distribuição de renda. Instituições são as regras do jogo. São elas que estabelecem limites em que você joga. Nas instituições políticas você tem as leis, a Constituição e os Poderes. Olhe o que está acontecendo entre os Poderes. Eu ligo a televisão e vejo uma reunião ministerial na qual um ministro se referia com palavras de baixo calão ao Supremo Tribunal Federal. Certas pessoas com ideologia semelhante ao governo fazem pressão junto ao STF. Vejo o enfraquecimento dos partidos. Você fala em Centrão, mas o Centrão é um conglomerado de interesses, não é uma coalizão em torno de um programa de governo. O sistema partidário nosso criou um Legislativo disfuncional. E aí tem o papel dos militares. Eles são uma instituição de Estado, não uma instituição política, um quarto poder. Mas existe um temor de que uma deterioração institucional produza um regime autoritário. Eu acho que pioramos as instituições, mas não chegamos a esse ponto. O temor, entretanto, está aí.

Valor: O medo existe, mas o senhor não compartilha dele, é isso?

Pastore: Existe. Na altura que estou na minha vida quero ser otimista.

Valor: Em relação a 2022, o senhor não parece otimista.

Pastore: Eu faço o que está ao meu alcance. No limite do que eu posso. Vou morrer lutando, não perco a esperança. Acho o quadro muito feio sim, mas não perco esperança.

Valor: Podemos viver em 2022 um quadro parecido com o de 2002, com instabilidade e reação a cada pesquisa?

Pastore: Em 2002 era diferente. O Brasil tinha US$ 50 bilhões em reservas. O Arminio [Fraga] estava no Banco Central. O real em um ano depreciou 100%. A meta da inflação era 6,5% e por causa da depreciação cambial foi para 17%. Ele tinha que intervir no mercado de câmbio para segurar a volatilidade, sem reserva para vender. O mercado não queria swaps, não queria garantias contra depreciação, queria dólar para mandar pra fora. O cupom cambial subiu a 50% ao ano. O Embi Brasil (medida de risco país) bateu em 2.500 pontos. Existia o temor de que o governo iria repudiar a dívida. Tínhamos acabado de sair da crise da dívida externa. A situação hoje é muito diferente. Acho que agora se entendeu que totó na dívida ninguém dá. Senão cai o governo. Este tipo de risco não está mais lá. O que está à frente é o risco de medidas autoritárias e populistas que põem em perigo a estabilidade da economia, porque produzem fuga de capitais. Não é que o estrangeiro traz menos recursos pra cá. O brasileiro começa mais a investir em fundos internacionais. E aí o risco pressiona câmbio, pressiona a curva de juros, atrai menos capital e cresce menos. Como os governos são instáveis, sem diretrizes, em cada um dos momentos você tem flutuações que não tem como entender. Isso tudo piora o ambiente de negócios, deixa a economia travada. O temor que eu tenho para 2022 é isso. É acontecer alguma coisa parecida com essa.

Valor: Com todos os riscos monetários presentes, não só políticos, mas relacionados ao Fed e à nova variante, o Banco Central vai ter que alterar o ritmo do aumento de juros? E de que maneira influenciará o câmbio?

Pastore: O juro mais alto ajuda a valorizar o câmbio, porque atrai capitais. Mas taxa de juro não é para mexer no câmbio, é instrumento para a inflação. O Banco Central andou atrás da curva, demorou pra começar a subir o juro. E quando subiu o juro veio dizer que ia fazer um ajuste parcial. Aí a inflação andou e depois de três elevações de 75 pontos base, a Selic real ainda está em zero. Vai ter que continuar subindo. Ele vai ter que ficar um pouco acima do neutro, porque tem muita pressão inflacionária andando.

Valor: Qual sua estimativa?

Pastore: Entre 7,25% e 7,5%. Não é o 6,5% que está na cabeça do mercado. Tem muito risco fiscal, de gastar mais, de aumentar o prêmio, de depreciar o câmbio. Olha aí o câmbio. Quando baixou abaixo da barreira dos R$ 5 todo mundo pensou que ia lá pra baixo. Mas bastou um piparotezinho… E por que isso? Porque tem risco aqui. No ano que vem o que pode acontecer? Vamos botar dois extremos. Em um, com enorme surpresa, vamos ver o presidente politicamente responsável, mais calmo, sem falar palavrão, conduzindo a economia. O risco cai, baixa a taxa de juros. Se ele gastar mais, fizer mais populismo, aí o prêmio de risco sobe. Aí se o Banco Central tiver subido a taxa de juros, feito o ajuste para evitar sair da meta, estará “better off” [melhor]. Se eu estivesse sentado no Copom, pensaria nisso.

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https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/07/26/vamos-virar-produtores-de-entropias.ghtml

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