Folha (publicado em 26/09/2021)
Em aula magna proferida em janeiro no encontro anual da Associação Americana de Economia (e publicado em periódico), o professor Emanuel Saez (UC Berkeley) apresentou graficamente a evolução a partir de 1870 da carga tributária para alguns países da Europa e para os Estados Unidos. Apresentou também, para um agrupamento de países da Europa, uma decomposição do gasto público por categoria, ambos como porcentagem do PIB e extraídos do livro “Ideologia e Capital”, de Thomas Piketty.
Os dados apresentados consolidam os gastos do Estado como um todo, ou seja, incluem os três Poderes e os governos central, estaduais e municipais. Na Europa, até o início do século 20 as receitas tributárias não chegavam a 10% do PIB e bancavam o que ele denomina de Estado “real” —no sentido de realeza ou soberano.
Os gastos desse Estado “mínimo” incluíam itens administrativos, lei e ordem, defesa e infraestrutura. Não cobriam gastos sociais, sendo, portanto, um Estado pequeno.
No início do século 20 os gastos públicos começaram a crescer e com eles a carga tributária. Foi o nascimento do Estado social, ou do bem-estar social. Por volta de 1970 o gasto público médio na Europa subira para algo em torno de 45% do PIB, sendo de 40% no Reino Unido e mais do que 50% na Suécia e na França. Interessante notar que nos Estados Unidos esse número ficou em torno de 30%. Desde então essas porcentagens pouco mudaram.
Nas palavras de Saez: “O crescimento do governo no século 20 é quase que totalmente explicado pelo crescimento do Estado social, que provê educação, apoio ao cuidado com as crianças, saúde para os doentes, aposentadoria para os velhos e rendas para deficientes, desempregados e pobres”.
Entre suas origens incluem-se voto e voz para mais e mais gente, a percepção da seguridade social como instrumento eficiente de compartilhamento de riscos e um desejo de maior mobilidade social, todos tendo o “véu da ignorância” de Rawls como princípio de convivência e organização social (pense na pergunta: como você desenharia as regras de distribuição do Estado social se não soubesse em que família nasceria?).
A dispersão no tamanho do Estado entre os países avançados é bastante relevante e espelha diferenças culturais e históricas. Por exemplo, os Estados Unidos desde sempre exibiram um certo grau de desconfiança com relação ao Estado. Não surpreende, portanto, que sejam hoje o único país avançado que não oferece cobertura universal de saúde (falta incluir uns 10% da população).
Economistas e outros cientistas sociais se dividem quanto às origens e consequências do Estado social para o nível de renda de cada país. Saez argumenta de forma convincente que os europeus optaram por trabalhar menos.
Outros estudos mostram que a produtividade por hora trabalhada na Europa é semelhante à americana. De um jeito ou de outro, todos atingiram padrões de vida elevados, o que sugere que em cada caso o sistema político produziu um Estado eficaz e, para padrões históricos, grande.
Como se encaixa o Brasil nesse contexto? Na Constituição de 1988 foi feita uma clara opção pelo Estado social. Avanços importantes ocorreram desde então.
O gasto público cresceu bastante e está em torno de 35% do PIB, um nível elevado para um país de renda média. No entanto, há cerca de 40 anos nossa renda per capita parou de se aproximar daquela dos países mais avançados, e a desigualdade segue muito elevada e bem maior do que a deles. Há muito a fazer, mas o debate público atual não dá margem a esperança.
Tenho defendido aqui que o Estado brasileiro tem muito espaço para aumentar a sua produtividade. Indício disso é que quase 80% do gasto público vai para a folha de pagamento e para a Previdência, porcentagem bem superior à de países comparáveis ao Brasil.
Nosso Estado é de tamanho médio para grande, mas não parece ser mínimo no sentido estrito da palavra, por não ser o menor possível para cumprir seu papel. Uma boa reforma do RH do Estado é urgente e imprescindível, mas pelo visto vai ficar para mais adiante.
Há espaço adicional para economias no sistema previdenciário assim como através da eliminação dos relevantes aspectos regressivos da tributação.
Uma vez obtidas as economias, seria desejável e possível redefinir prioridades para o gasto público. Para tanto, não bastaria levar em conta apenas as verbas alocadas nos ministérios —seria necessário considerar também os gastos das demais unidades da federação.
Saez apresenta uma decomposição do gasto do Estado consolidado europeu em grandes categorias. Faz falta algo assim para o Brasil. O mais próximo que encontrei (graças a Pedro Herculano de Souza, a quem sou grato) foi o valioso Balanço do Setor Público Nacional (Secretaria do Tesouro Nacional, ano base 2019), que tem limitações, mas dá uma ideia das magnitudes.
Com base nos dados lá obtidos (p. 22), recriei para o Brasil as principais categorias, que listo a seguir, com o valor de seus respectivos gastos, em pontos de porcentagem do PIB.
Gasto total 35, Estado mínimo 9, Educação 5, Saúde 5, Previdência 13, Gastos e transferências sociais 3. Uma decomposição como essa, um pouco mais detalhada, deveria informar o desenho de uma estratégia de desenvolvimento digna do nome.
Além da definição de prioridades para o gasto, o exercício esbarra em questões ligadas à arquitetura da federação e ao tamanho do Estado. Muito assunto para um artigo curto, mas fica o registro.
Sem clareza quanto ao destino dos recursos públicos, que explicite as escolhas que necessariamente têm de ser feitas, é difícil imaginar um futuro melhor para o país.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/arminio-fraga/2021/09/sobre-o-tamanho-e-as-prioridades-do-estado.shtml
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