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Taxa de juros neutra: em alta?

Valor (publicado em 07/09/2021)

Uma das variáveis mais importantes para a implementação da política monetária, sob o regime de metas para a inflação, é a taxa de juros neutra. A taxa neutra é aquela que, deflacionada por expectativas de inflação, não induz a aceleração ou desaceleração inflacionária, com o hiato de produto zerado. Simplificando bastante, a “regra do jogo” típica do regime monetário vigente prevê que, quando um banco central projeta inflação acima (abaixo) da trajetória de metas, deve elevar (reduzir) a taxa básica de juros até que a taxa efetiva se situe em patamar adequadamente superior (inferior) ao neutro.

A taxa neutra é uma variável que não pode ser diretamente observada, então precisa ser estimada. Existem duas estratégias para estimar essa variável. Uma, a mais simples, é simplesmente calcular uma média suficientemente longa das taxas observadas. Outra, mais sofisticada, é utilizar modelos econométricos e que mostram a sensibilidade da taxa neutra a fundamentos macroeconômicos.

Estimar a evolução da taxa neutra é tarefa relevante dos departamentos de pesquisa dos bancos centrais, e também nas áreas de análise econômica do setor privado. Importante notar que essas estimativas variam ao longo do tempo. Nas economias maduras, por exemplo, a literatura recente indica que as taxas neutras devem ter caído em cerca de 2 p.p., desde a grande crise financeira global de 2008.

Os efeitos da pandemia sobre taxas neutras são ainda incertos, mas podem se mostrar relevantes. Há fatores que podem influenciar para os dois lados. Mudanças na disponibilidade relativa dos fatores trabalho e capital, e poupança precaucional, bem como maior desigualdade, apontam para uma possível redução adicional da taxa neutra. Por outro lado, o expressivo incremento da oferta de títulos públicos pode apontar para uma elevação, mesmo em economias sem os prêmios de risco observados nos mercados emergentes.

Vale notar que a corrente onda inflacionária global deve influenciar, também, a discussão sobre a tendência para as taxas neutras na saída da pandemia. No Brasil, o Banco Central tem estudado o tema de forma recorrente desde a década passada, e tem também conduzido pesquisas de tempos em tempos junto a participantes de mercado. A primeira pesquisa, em fevereiro de 2012, reportou que a visão dominante do mercado era de uma taxa neutra em torno a 5,5% ao ano. Um boxe no Relatório de Inflação publicado em setembro daquele ano sugeria uma taxa neutra entre 3% e 4%.

Depois de longo hiato, o Banco Central fez outra pesquisa junto ao mercado, em 2017, após a aprovação de importantes reformas, e colheu a resposta (mediana) que a taxa neutra de curto prazo seria de 5%, caindo para 4% no horizonte de cinco anos.

Um gráfico, incluído em boxe do Relatório de Inflação de dezembro de 2019, apontou para uma redução da taxa neutra para 3%, ante 5,5% em 2016. Finalmente, uma pesquisa junto ao mercado em julho de 2021, aponta para uma taxa neutra de médio e curto prazo de 3% a.a. Trabalhos acadêmicos e do FMI indicam uma taxa neutra no intervalo entre 4,5% e 2% a.a., recuando no passado recente.

A literatura, em suma, mostra uma taxa neutra variável, e que recuou em função de fatores internacionais e, mais importante, dos efeitos das reformas implementadas desde 2016. Tais reformas incorporaram duas dimensões importantes: controle da taxa de crescimento das despesas públicas, consubstanciado no teto de gastos, redução da segmentação do mercado de crédito e o consequente aumento da penetração financeira.

O gasto público cresceu ao ritmo de 6% ao ano, além da inflação, entre 1997 e 2016. Com a adoção do teto, o ritmo caiu para 1%, até o choque da pandemia em 2020. Observa-se, também, que graças ao constrangimento imposto pelo teto, o gasto deve apresentar importante contração em 2021 e em 2022, de acordo com as estimativas dos economistas do Itaú (-22% e -1,5%, respectivamente).

Até meados da década passada, as concessões de crédito do BNDES, com taxas de juros pouco sensíveis à evolução da política monetária, correspondiam a cerca de 120% do total de recursos levantados pelas empresas junto ao mercado de capitais no país. Com isso, o Banco Central era obrigado a trabalhar com taxas de política monetária muito acima do padrão internacional, como forma de compensar o efeito reduzido da política monetária – a Selic praticamente duplicou, subindo de 7,25% a.a. em outubro de 2012 para 14,25% em julho de 2015. Desde então, as operações de mercado de capitais cresceram muito, enquanto as concessões do BNDES recuavam, e, no ano até setembro de 2021, equivaliam a apenas 11% dos montantes captados pelas empresas no mercado de capitais.

As atuais projeções para a evolução da taxa Selic, capturadas pela pesquisa Focus, do Banco Central, apontam no cenário mediano do mercado para um máximo de 8,5% ao ano, em 2022 (ou 9% a.a., no cenário do Itaú). Essas projeções embutem estimativas para a taxa neutra de juros na vizinhança de 3% a.a., às quais se adicionam expectativas de inflação um ano à frente, gerando uma Selic nominal neutra próxima a 7,5% ao ano.

No entanto, caso a política fiscal volte a ser caracterizada pela expansão acelerada dos gastos e caso ocorra uma retomada da segmentação do mercado de crédito, seria implausível esperar que a taxa neutra fique estável. Em um cenário de aumento da taxa neutra para algo como 4,5% a.a., um ponto intermediário entre as estimativas recentes e o que se estimava no período anterior às reformas, dificilmente a autoridade monetária conseguiria trazer a inflação de volta para a trajetória de metas com a taxa de juros nominal em um dígito. Esse é o risco de se considerar, erroneamente, que a taxa de juros neutra independe do arranjo de política fiscal e da estrutura do mercado de crédito.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/taxa-de-juros-neutra-em-alta.ghtml

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita