Globo (publicado em 15/10/2021)
Em pouco mais de um ano, começarão novos mandatos para presidente da República, governadores e parlamentares federais e estaduais. É uma oportunidade para desfazer recuos e conseguir avanços.
O que cobrar dos candidatos? Para meu gosto, eles deviam se interessar pela saúde do direito público. Ao menos um pouco. Não tem sido o caso.
Os interesses são fragmentados na sociedade, vivem em luta e geram conflitos. Arbitrá-los, em busca de paz e desenvolvimento, é missão delicada e permanente. Para isso existe o mundo público: normas públicas, atos públicos, organizações públicas, agentes públicos, serviços públicos. A qualidade desse mundo depende das características de sua estrutura jurídica.
Sobre isso, gostaria de fazer três perguntas aos candidatos. Aqui vão elas – para facilitar, incluo minhas respostas atuais, mas, claro, estou aberto a repensá-las.
Primeira pergunta. Será que vale quase tudo para tentar evitar comportamentos privados potencialmente nocivos ou melhorar a vida em sociedade?
Se o candidato responder que sim, e ainda invocar o dogma da supremacia do interesse público sobre o privado, um velho jargão jurídico, vou ficar com um pé atrás. Na dúvida ou incerteza, creio que o mundo público deve se conter.
Vejo como perigosa a tendência de, mesmo sem evidências firmes sobre possíveis resultados positivos ou negativos, os agentes públicos iniciarem intervenções regulatórias (imposições, proibições, licenças, processos) ou operações diretas (polícia, empresas estatais, distribuição de recursos públicos). Se o candidato tiver essa tendência, vou temer que ele faça apostas arriscadas com a liberdade e o patrimônio das pessoas, desperdice recursos públicos em aventuras ou tome o estado como poder mágico.
Acho que vou preferir outro candidato. Busco um candidato cuja opção seja por políticas públicas bem focadas e fundamentadas, com prazo certo, sujeitas a sistemas independentes de avaliação e a revisões obrigatórias e constantes. Alguém que não se fascine com prerrogativas públicas, que tenha a coragem de, mesmo em situações difíceis, pressupor que estado não é solução de princípio para todas as coisas.
Meu candidato ideal tem de acreditar que medidas públicas não se justificam por si mesmas e, por isso, precisam de experimentos prévios, de indícios confiáveis quanto a sua eficácia e eficiência, de ponderação sincera quanto a seus ônus e perigos. Dá trabalho, mas é um preço justo.
Traduzindo para uma fórmula mais jurídica: rejeito o jurídico que brota e fica por improviso ou por inércia; para mim, o direito público tem de assumir o ônus permanente de provar-se necessário e adequado. Candidato que não entende isso não terá meu voto.
Segunda pergunta. A favor ou contra regras jurídicas especiais para organizações, grupos ou situações?
Autoridades públicas são abordadas o tempo todo – com muita insistência e estridência — com demandas por tratamentos especiais de todos os tipos. Algumas se justificam, claro. O problema é que, por princípio, grupos empresariais querem subsídios só para si, organizações públicas argumentam que as regras gerais não lhes caem bem, segmentos de agentes públicos buscam benefícios diferenciados para sair da vala comum (e sedimentar verdadeiro sistema de castas no serviço público).
A luta dos grupos para se diferenciar é mais mobilizadora — e sempre mais barata e vantajosa — do que o engajamento de todos em reformas amplas que ajustem os regimes gerais para torná-los universalmente adequados. A bola de neve dos regimes especiais vai inviabilizando a transparência e o controle, que só funcionam bem com regras simples. E a coesão social vai para o segundo plano.
Por cautela, prefiro autoridades públicas mais neutras, cujo partido seja o mais universal possível. Espero delas uma dose de desconfiança e de ceticismo, em alguns casos de resistência, quanto a medidas em favor de particularismos. A razão é óbvia: se agentes públicos não tiverem o universal como valor firme na largada, não vão equilibrar o jogo com grupos de interesse poderosos ou barulhentos.
Isso quer dizer que, embora respeite muitos dos particularismos que existem na sociedade, procuro candidatos cuja balança penda para um direito público cujas regras sejam o mais possível universais.
Terceira pergunta. A Constituição de 1988 já nasceu enorme e aumentou bastante com o tempo. Será que ela pode ser ainda mais encorpada, sempre que novas regras parecerem relevantes?
Ao longo dos anos, pesquisando a experiência brasileira, passei a ter uma visão contida sobre o lugar da Constituição na vida política. Normas constitucionais têm de cuidar apenas da estrutura indispensável e permanente do estado social e democrático de direito, incluindo direitos fundamentais. Prefiro que o máximo de assuntos seja resolvido pelos poderes ordinários, em especial os legisladores e governantes, que são renovados democraticamente.
Se um candidato está disposto a ampliar sem parar a nossa Constituição é porque não confia nos legisladores do futuro e prefere engessar ao máximo as regras que julga importantes, para elas serem difíceis de mudar. Para mim, um candidato assim não vai servir, pois ele tem medo em excesso da democracia e aceita sabotá-la aos poucos com constitucionalização e com delegação sistemática de poderes a juízes constitucionais. Suspeito que esse candidato não leva muito em conta os custos da rigidez jurídica e os problemas que traz para a sociedade.
Tendo a valorizar um nível razoável de flexibilidade jurídica nas políticas públicas, que permite mudanças pacíficas, embora nem sempre boas. E prefiro menos jurisdição constitucional; em demasia, ela acaba por elitizar as escolhas públicas. Minha expectativa, portanto, é por um direito público apenas moderadamente constitucional. Fomos para o extremo oposto nas últimas décadas, confundindo emenda constitucional com post em rede social, e estamos pagando caro por isso.
Em conclusão: pela minha visão do Brasil atual, eu gostaria de votar por um direito público que, além de assumir o ônus permanente de provar sua própria necessidade e adequação, seja construído com regras o mais possível universais e o menos possível constitucionais.
Link da publicação: https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/carlos-ari-sundfeld-qual-direito-publico-eleger-em-2022.html
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